CINZAS
Quanto mais flagelado um país, maiores as
torturas infligidas. Duas horas da tarde. Trinta e nove graus centígrados.
Agosto. Céu muito azul, mas só por cima. A linha do horizonte expande uma névoa
que a ilusão atira para manhãs imersas em ondas de sal. Mas o mar fica muito
longe. Trezentos quilómetros reduzem-nos à realidade das sufocações e da
prostração. Progressivamente o céu azul deixa de o ser, e a névoa, cada vez
mais densa, difunde-se, e o sol que era há pouco luminoso e límpido é agora
marralheiro e turvo.
Subitamente acordamos da virtualidade e
afundamo-nos no desespero do realismo fatal. Na crista da serra perfilam-se
colunas espessas de fumo negro. Não tarda que os sentidos reajam ao cheiro
insidioso a natureza queimada. O ruído de uma máquina voadora aguça presságios.
Leva suspenso um gigantesco balde de água como a cegonha transportava o bebé
das nossas ilusões pueris. Mas aqui, em lugar de nascer, mata-se. Os
sanguinários da floresta rebentam todos os verões em cogumelos cada vez mais
venenosos e perversos. São eles os protagonistas da vergonha, são eles os
algozes de um país cada vez mais diluído na aridez e na apatia da resignação.
Já se ouve o grito sufocante das sirenes que,
não tarda, roçarão os nossos sentidos em promessas de salvamento e
solidariedade. Trazem homens pendurados, armados de machados com que tentarão
desenterrar refrigérios para infernos que seres menores atearam. Ao ruído da
sua passagem eleva-se a vozearia rude da sueca
na esplanada da tasca mosqueirenta e lúgubre.
- Cubro
com a manilha. E já ganhámos, parceiro! Mais uma rodada, oh, Manecas!
- Onde
é que é isto hoje? Em Casegas? Porra, que é todos os anos a mesma merda…!
- É
aquele a embaralhar.
-
Filhos da puta, que mergulhavam todos de focinho na fogueira. Ah, carago, se eu
mandasse…”
- É
aquele a dar.
-
Trunfo é paus.
- Os
que já arderam, ou os que vão arder a seguir?
-
Deixa-te de porras e joga, que já ganhámos outra vez…
- Não
brinques com coisas sérias, Tomás.
- Não
brinques? O que é que falta queimar? Onde estão os gajos que mandam? Agarraram
o “Bexigas Doidas”, o ano passado, e já aí anda outra vez, de isqueiro no
bolso. E todos sabem que não fuma, nem é para dar lume a ninguém. Sabes que
mais? Porque é que não acabam de vez com esta palhaçada? Cá por mim, pode arder
o resto, já hoje. Cortava-se o mal pela raiz. Pinhais e quintas para defender é
coisa que nunca tive. Esses que se preocupem…
Quando o cepticismo e a indiferença passam ao
lado da tragédia, e o instinto de reagir é embotado pela letargia do
discernimento, nada mais conta que a acomodação e a placidez. Tudo o resto são
reminiscências atávicas consolidadas na iliteracia cultural de um povo atolado
em depressões recorrentes.
Agora é uma ambulância que aparece e
desaparece na vertigem de fugas e prioridades. Sumiu-se na última curva da
estrada que as alternativas governamentais farão derivar para aceiros
envergonhados, ladeados de lixo florestal por limpar.
E a Natureza arde. A cumprir ciclicamente um
mandato de morte anunciado. Mas eles estão lá. Farão o que puderem. Homens e
mulheres em defesa, quantas vezes, de quem os maltrata. O cego mais cego é o
que não quer ver. Meu Deus, e tanto cego por aí!
Sufoca-se. O vento cúmplice da desgraça
arrasta consigo vagas de fumo cada vez mais negras e opacas. Cheira a fogueiras
de um S. João calendarizado não há muito. O dia que amanheceu luminoso,
prenunciador de sossegos e calmarias, um monstro o transformou num inferno de
sobressaltos e angústias por resolver.
Alto de
Silvares.
As janelas abertas do automóvel deixam cair sobre o papel partículas de uma
natureza a agonizar. Quisera juntá-las e devolvê-las à consciência dos
psicopatas que se movimentam impunes a uma justiça inerte e bafienta. A impunidade
é o meu desespero, e a hipocrisia política a minha náusea.
Impotente, rodo a chave e arranco.
A noite chegou mais cedo ao acrescentar os
seus negrumes ao céu de Inglaterra que se abateu, espesso e
parado. Cisternas de bombeiros percorrem
na escuridão barragens, charcas e piscinas na
busca autorizada do único elemento da natureza capaz de neutralizar com
eficácia a fúria de um outro, seu irmão, aquele que mais depressa tudo reduz a
átomos - o fogo. É uma luta
fratricida, mas decretada por emergências que a aflição impõe.
Duas da madrugada. As labaredas que o dia
escondeu são as mesmas que agora mostram cristas aterradoras, cada vez mais
próximas do que ainda está por arder. O lugar é comum, mas o cenário é, de
facto, dantesco, e a luta,
injustamente desigual. Mas eles continuam lá. Desistir não é o lema. “Vida por vida”. Até à exaustão. Até
caírem para o lado.
Ninguém dorme. Como dormir com o inferno à
porta?! Estendem-se mangueiras e molham-se quintais. A lua, quase cheia, pouco
ajuda, incapaz de romper a impenetrável massa de fumo. As forças minguam, tal
como o vento parece ter amainado. Milagre? Pode ser. O turbilhão de chamas
recrudesceu. Como a fera do circo a recuar, cobarde, ao som do chicote do
domador.
Daqui a pouco é novo dia. A manhã romperá
vestida de cinzas poisadas em chãos fumegantes. Os primeiros alvores trazem
recados pungentes de dor e desolação. A tragédia abatera-se sobre quem toda a
vida foi abnegado e justo. Cortes e pardieiros reduzidos a escombros ainda em
combustão albergam corpos calcinados de rebanhos e animais de lavoura, único
sustento de gente pobre e crucificada. Olivais promissores, irremediavelmente
perdidos. Porcos a engordar até ao ano que vem, complemento único de uma
subsistência magra, jazem carbonizados. Hortas e vinhedos que, por caprichos ou
necessidades, eram o orgulho de quem com sacrifício os amanhava e amava, o lume
os reduziu completamente. Cerejeiras e pessegueiros onde melros e toutinegras
ainda ontem trinavam hinos à natureza, morreram (de pé!), de cotos apontados a
clamar justiça. De duas casas de habitação, restaram as paredes, e nos quintais
ficaram a carcaça de um carro velho, os alcatruzes retorcidos de uma nora
secular e os aros das rodas de uma carroça antiga. A casa de amarelo era o
património único de um emigrante modesto a compor a vida em França, porque o
país do berço tudo lhe negou até aos trinta e cinco anos. Não resistiu à
derrocada emocional. Cometeu o suicídio, soube-se depois. Desesperos e solidões
ditaram-lhe um bilhete que deixou escrito. No final, a expressão de um desejo
último: ser sepultado na terra que o acolheu. Nem na morte quis regressar.
Não passaram muitas horas para que os jornais
e as televisões abrissem com a fotografia de um jovem de vinte e nove anos de
idade. A farda de bombeiro e o olhar resoluto fixado em auroras prometidas
identificavam uma vida que acabava de soçobrar à insanidade de especímenes que
de humanos têm apenas a forma anatómica e nenhuma lei teve ainda a coragem de
extinguir de vez…
Em tudo quanto foi terra de gasómetro e
silicose a atmosfera continua de cinzas, e o sol, vestido de luto. As mulheres
redobraram o preto e choram em grupos de corvos. Os homens, acocorados sob um
castanheiro velho, de ouriços a abrir, consomem cigarros em baforadas de raivas
e impotências por resolver há muitos, muitos anos. Os cães, esses seres
extraordinários que tudo pressentem e entendem, lançam interrogações em latidos
lúgubres que se fundem no ronco de um helicóptero em manobras de rescaldo.
Por entre silêncios e palavras que não saem,
acorrentadas ao nó da garganta, a tarde avança, pesada. Com ela recuam sonhos e
projectos para longes sem regressos. Os velhos já nada pedem à vida, e os novos
são aparições fortuitas e fugazes.
Ao cair da noite, suspensa das traves de uma
adega escura onde repousa o vinho acidulado e fresco, uma corda grossa
balanceava o corpo ainda quente de um homem de cabelo grisalho e barba por
desfazer.
Ontem, à sueca,
ele não tinha herdades nem pinhais para guardar. Agora, de olhos esbugalhados e
vidrados no vazio, embala no charco da matéria um filho morto, mas muito vivo
além, porque apenas transpôs o território onde campeia a imperfeição humana.
Dos dois só a memória dele perdurará.
*Fernando Serra
Nota editorial:
Texto enviado pelo autor.
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