Manifestos contra o medo
Antologia de uma intervenção cívica
Setúbal, 22 de Outubro, 2012
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O mal que se vê é aguilhão para o bem que se deseja; e quanto mais duro, quanto mais agressivo, se bate em peito de aço, tanto mais valioso auxiliar num caminho de progresso; o querer se apura, a visão do futuro nos surge mais intensa a cada golpe novo; o contentamento e a mansa quietude são estufa para homens; por aí se habituaram a ser escravos de outros homens, ou da cega Natureza; e eu quero a terra povoada de rijos corações que seguem os calmos pensamentos e a mais nada se curvam.
Agostinho da Silva, “Os Grandes Forjam-se na Adversidade “ ( excerto), in 'Textos e Ensaios Filosóficos'
É esse “coração rijo” forjado na adversidade e que a nada se curva, que vejo no meu amigo Luís , autor do livro que hoje se apresenta na cidade de Setúbal. Se eu fosse pintora, se soubesse fazer retratos a traço e ponto, era um grande coração que pontuava o seu retrato. Foi esse tic tac , esse alerta pulsante, que intimou a minha presença, por ele cá estou de alma e coração.
“ Manifestos contra o medo “ é efectivamente um esconjuro contra o medo, duzentas valentes páginas de uma vida que não se rende à “mansa quietude”, ao contentamento dormente que é “estufa para homens “que são escravos de outros homens, como diz Agostinho da Silva.
Apesar de raramente nos vermos, porque as vidas activas têm agendas pesadas, tenho o Luís como um amigo e esse esforço, esse alimento da amizade ( que tanto prezo e que aqui agradeço), deve-se essencialmente ao seu investimento pessoal e emocional em ser presente, em estar presente e aos actos com que resolveu presentear-me. Este convite para apresentar o seu livro, estas duzentas páginas de valentia cidadã, são apenas um desses actos cúmplices.
Conheci o Luís há um bom par de anos porque um dia, mais precisamente, numa noite do inicio Outono, jovem professor destacado em Setúbal, resolveu aparecer no Museu do Trabalho Michel Giacometti, para participar ( para fazer parte ) de uma das muitas tardes e noites tertuliantes que por lá acontecem. Chegou , integrou-se sem nada dizer e no final, com a inquieta amabilidade que o caracteriza, foi ficando. Quis saber mais sobre o museu, sobre o que por ali se passava e conversámos. Nunca lhe perguntei porque escolheu o museu para se abrigar na cidade desconhecida. Também não lhe vou perguntar agora, mas desconfio que pesou na sua escolha o bichinho de historiador inquieto que, apesar de compulsivo leitor, amante de papel escrito, da boa escrita... ( do cheirinho dos livros antigos ), não lhe chega o que os livros dizem sobre as cidades e as pessoas, prefere "farejar" o lugar, seguir as pistas, em busca da arca perdida, tal qual um explorador romântico das fantásticas memórias ( históricas, sociais e pessoais), entidades e identidades que dormem nas raízes de uma cidade, em qualquer cidade...
Quem aspira mudar, revolucionar, tem que se misturar e não ter medo. Em defesa deste princípio convoco de novo fala metafórica de Agostinho da Silva que diz " O mal que se vê é aguilhão para o bem que se deseja ".
Os revolucionários são sempre líricos e sedentos de saber, coisa que não se passa com os revoltados que julgam que sabem tudo, papagueando os livros. Que o Luís é um lírico, um idealista, eu sei ( ou julgo saber), o que eu não sei é o que o moveu ( ou o que o comoveu... ) a aterrar no museu numa noite de Outono, só sei que passado algum tempo quis voltar , arregimentou meios e vontades e voltou com a sua gente da Casa Comum das Tertúlias para uma visita à cidade, aos museus da cidade, trazendo Castelo Branco a Setúbal, numa inesquecível expedição pela história e pelo Património. O seu sentido comum e a consciência de que a amizade é um domicílio ( palavras que ainda ressoam de Manuel António Pina, recentemente desaparecido ao falar de casas , das casas ...) , sempre presentes.
O Luís não se fica pelas palavras, não se perde em teorias gerais, fala de coisas concretas, apela, insurge-se sem medos, actua e incita a actuar. Compromete-se. Levanta os problemas mas também não se poupa a apresentar soluções.
Pequenas e grandes soluções que vão desde o elencar de conselhos práticos para o melhor funcionamento da Biblioteca Municipal de Castelo Branco, onde vive, sugerindo a conveniente adequação dos horários às necessidades dos leitores, com abertura aos fins de semana, ampliando a oferta cultural e diversificando actividades, num esquema rotativo de trabalho, até à apresentação de projecto para erradicação da pobreza e dos desequilíbrios populacionais através da Reforma Agrária e ainda propostas para o aprofundamento da Democracia, para além do reconhecido agradecimento a figuras públicas como Melo Antunes e Luís Sá, entre outros, pelo que colheu dos seus ensinamentos e do exemplo que deram.
Este aparente ecletismo entronca sempre num fortíssimo ideal republicano e de cidadania que não dá tréguas a injustiças e desvios de carácter. É um homem da terra com os pés assentes na terra, na sua terra ( Castelo Branco ), mas vinculado às grandes causas dos direitos humanos e da Cidadania. Como afirma na introdução de “ Manifestos contra o medo: antologia de uma intervenção cívica “, a sua acção pauta-se pela “ defesa da República, o combate ao racismo e à xenofobia, a defesa do Laicismo, o apelo a uma cidadania activa, nomeadamente o combate aos abstencionismo, a defesa duma melhor e maior oferta cultural, por um maior empenho nas comemoracoes do 25 de Abril e do 5 de Outubro, a defesa da escola e da saúde pública, no empenho em sublinhar o papel humanista de Arístides de Sousa Mendes, da Lusofonia, a luta pela implementação da regionalizacão ou a defesa duma Região (chame‑se ela Distrito de Castelo Branco, Beira Baixa ou Beira Interior) e duma cidade, Castelo Branco."
Ainda na introdução retrata-se, aclama e proclama:
"Estes textos são opinião dum homem livre. Nunca pedi autorizacao para escrever nenhum deles, nem fiz fretes a ninguém (partido ou patrão), disse o que julguei ser importante dizer num dado momento, fundamentando a opinião e recorrendo a uma frontalidade que nao abdico, sobretudo perante o Poder, seja ele qual for. “
A centena de crónicas que compõe esta valiosa antologia contra o medo, exceptuando os textos inéditos devidamente assinalados, foram publicadas entre Maio de 1995 ( tinha o Luís 22 anos nessa altura !) e Setembro de 2011, na blogosfera, no Rádio e numa extensa lista de orgãos de imprensa nacional e local, que passo a citar pelo que atesta do acolhimento ao que que escreve e dos diferentes veículos que usa para se manifestar:
“Rosa Sinistra”, “Raia”, “Publico”, “A Pagina da Educação”,“Baril”, “Diário do Alentejo”, “Diário Regional de Viseu”, “Diário As Beiras”, “Diário XXI”, “O Distrito de Portalegre”, “Fonte Nova”, “Gazeta do Interior”, “Gazeta de Satão”, “Imenso Sul”, “Jornal do Centro”, “Jornal do Fundão”, “JF Jovem” (Suplemento do “Jornal do Fundão”),“La Tertulia”, “Notícias da Covilhã”, “O Interior”, “O Malhadinhas”, “Porta da Estrela”, “Povo da Beira”,“Reconquista”, “Sumário”, “Tertuliando – Fanzine da Casa Comum das Tertúlias” e “Rádio Juventude”.
À laia de posfácio visual, revisito as peças do livro, como de uma estação se tratasse, e saio pela ultima página depois de ter percorrido, com extraordinário prazer, todos os cruzamentos e linhas, não sem que antes me detenha num ponto: reconheço, quase me sinto retratada no percurso, postura cívica e orientação política do meu colega Luís Raposo, prefaciador deste livro, que conheço há muito tempo das lides museológicas, mas que acabei por descobrir aqui no que se refere ao percurso pessoal no campo politico / partidário.
Afinidades que provavelmente vêm da profissão e geração, um lastro comum de inflamadas militâncias, no pós 25 de Abril, que ambos vivemos, e um acervo de valores estruturantes do ser humano dos quais não largamos mão, contribuem para essa identificação. Afinal, o homem é o homem e a sua circunstância, como afirma Ortega & Gasset. Assim, dadas as circunstâncias, tal como o prefaciador Luís Raposo, também eu indepedente mas não indiferente alinho com ambos, por sinal Luís e Luís, no lato “ambos" que cabe nesta declaração:
“Vivemos ambos, pois, a vida pelo seu lado esquerdo, que é o lado do coração. Defendemos ambos que a história não terminou e que novos mundos, mais progressivos, mais justos, no fundo mais humanos, hão‑de surgir. “
Enquanto cidadã agradeço ao Luís Norberto Lourenço, a bravura e empenho cívico na luta pelos ideais da República e pela justiça social; como amiga , sabendo do seu gosto por rosas ( pela Rosa Socialista), deixo-lhe o excerto de um poema de Cora Coralina , a “poeta doceira “ de Góias, Brasil, que tanto adoro.
Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
Com toda a doçura, um abraço e obrigada.