fanzine Tertuliando (On-line)

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sábado, agosto 04, 2018

A extraordinária vida de Gertrude Bell: viagens, política e intriga

António Carlos Almeida*





 Resumo: A britânica Getrude Bell (1868-1926) foi diplomata, arqueóloga, escritora, espiã e entrou para a história por ter conseguido entrar na região mais complexa do mundo: o Médio Oriente. A maioria dos historiadores refere a sua forte personalidade, a que não é alheio o facto de ter perdido a mãe aos três anos e à forte ligação que tinha com o pai, Isaac Lucian Bell. Gertrude Bell foi a primeira mulher a licenciar-se em História na Universidade de Oxford. Com o compatriota T.E. Lawrence, seu amigo, que foi também arqueólogo, militar, agente secreto, diplomata e escritor, partilhou as mesmas ideias para o povo árabe. De realçar o facto de uma mulher ocupar um posto a tomar um posto na carreira diplomática numa zona estratégica e perigosa como é o Médio Oriente [i]. Ontem, tal como hoje, o Médio Oriente é uma região do mundo, sobre a qual muitos especialistas se referem como “umbigo do mundo”,exigindo competências e muita experiência no terreno e conhecimento de causa,que desempenha aqui funções políticas e até económicas. Por ter experiência no deserto, conhecer as tribos do deserto, é a primeira mulher a entrar para os altos escalões dos serviços secretos britânicos, a participar em exaustivas viagens pelo deserto e contribuiu para a formação do moderno Estado Iraquiano. Os seus livros sobre o médio oriente são ainda hoje fundamentais para a compreensão da região.


Era uma vez uma rainha que capaz de andar no meio do deserto, sem medo dos homens nem das tempestades de areia, com capacidade de criar reis, de moldar os desertos e andar neles dias a fio. Viajava sozinha por longos períodos, mesmo em tempos de guerra, tendo vindo a utilizar essa experiência de viajante para desenvolver mapas que mais tarde foram usados pot todos no seu quotidiano [vi]. Por isso se tornou uma lenda viva daqueles locais, todos queriam saber quem era a “Rainha do Deserto”. O filme de Werner Herzog de 2015, “Rainha do Deserto”, no qual Nicole Kidman interpreta Getrude Bell, tem todos os ingredientes para ser a história magnífica de uma mulher intrépida e sofisticada, que se impõe num dominado pelos homens [iii]. Nascida a 14 de julho de 1868, no condado de Durhan (Inglaterra) no seio de uma família aristocrata; Getrude Bell era filha de um grande industrial, Isaac Lowtian Bell. Inteligente e com um espírito aguerrido, extrovertida e aventureiro, foi admitida na Universidade de Oxford com apenas 17 anos, onde se licenciou em História com distinção, em apenas dois anos. Depois de terminar os estudos académicos, Getrude Bell decidiu viajar pelo mundo, visitando vários países do Médio Oriente, onde descobriu a sua paixão pelo montanhismo e pela arqueologia e onde, além de se deixar fascinar pela riqueza cultural, se tornou fluente em várias línguas [iv]. Com o início da I Grande Guerra (1914-1918) alista-se na Cruz Vermelha para trabalhar em França, mas devido aos seus conhecimentos da língua e costumes árabes, foi enviada para o Cairo, onde passou a trabalhar para o Governo britânico como sua representante na região. Durante este período o seu caminho cruza-se com várias celebridades, entre elas o arqueólogo T. E. Lawrence, mais conhecido por Lawerence da Arábia. A 12 de julho de 1926, Getrude Bell, que sofria de vários problemas de saúde, foi encontrada morta, após ter ingerido uma dose letal de medicamentos para dormir.

O filme “Rainha do Deserto” estreou no Festival de Cinema de Berlim, com a assinatura do aclamado realizador alemão Wernr Herzog, que adaptou uma narrativa biográfica de autoria de Georgina Howell (1942-2016) sobre Bell, arqueóloga, escritora, cartografa e política britânica do início do século XX. O elenco inclui Nicole KIdman, James Franco, Damian Lewis e Robert Pattison. Quando assisti a este filme de Werner Herzog, senti que a sua narrativa fotográfica se desenvolve num contexto de contos de fadas, num registo contemporâneo. Não só pelo seu próprio título, “Rainha do Deserto", mas também pela questão do orientalismo, tendo a sua personagem principal se movido sempre pela causa do povo árabe. O filme enquadra um universo único ao qual podemos experimentar uma narrativa ao estilo das "mil e uma noites" e das histórias que ouvimos em pequenos [v]. A Gertrude Bell é próxima das personagens dos contos de fadas atuais, uma mulher inteligente, que traça o seu caminho e não segue convenções, integra os serviços secretos ingleses, numa posição de destaque porque conhecia muito bem o deserto e porque não se deixou levar pelas convenções da época, recusando apenas o papel de dona de casa, dando uso aos seus conhecimentos históricos e linguísticos da região, percurso totalmente invulgar para época, criando mundos absolutamente novos. Este filme, não só se enquadra na temática de género, identidade e poder, mas também vem despertar consciências e mostrar uma mulher que continua viva para além do seu tempo, continua a ser a “Rainha do Deserto”, a “Fazedora de Reis”, a “Mãe do Iraque”, a “Lawrence da Arábia de Saias”. Desperta consciências numa viagem à volta de uma mulher, já que um filme pode também ser ao mesmo tempo uma excelente fonte e exercício de leitura de uma época que retrata não só o período vitoriano, dando-nos também o relato de uma voz inconformista, anti-colonialista, que defendia a liberdade do povo árabe. Por essa razão, no filme muitos homens questionam quem foi Gertrude Bell.


Quem é na realidade Getrude Bell? Essa “Rainha dos Desertos”? “Ela é a fazedora de Reis. É a Rainha do Deserto, senhor". A sua história é contada sob a forma de um canção épica de uma mulher que não era convocada por ninguém e aparecia onde queria como num passe de mágica, e por essa mesma razão ela foi tão admirada e a sua memória é conservada através do fundo fotográfico da Universidade de Newcastle. A sua história foi relatada em documentários, exposições, filmes e imaginem, até uma banda desenhada conta a sua história [vii]. O seu nome evoca imagens do exótico e do misterioso mundo árabe, mas Getrude Bell move-se também num discurso independentista, tendo ajudado demarcar as fronteiras de um Iraque moderno [viii]. Uma “fada madrinha” chamada Teerão O exotismo, do ponto de vista do europeu, é o ambiente onde se desenvolve grande parte, diria mesmo a principal parte da vida de Gertrude Bell, um ambiente que nos remete para as lendas, os contos fantásticos, e nos traz à memória personagens como Sherazade, dai ser tão evidente colarmos a história desta extraordinária inglesa a um conto das mil e uma noites, a um conto de fadas, e neste caso, a sua madrinha seria Teerão. Gertrude Bell foi passar algum tempo na embaixada britânica em Teerão, onde o seu tio era o embaixador Sir Frank Casells. É a partir desta estada que ela descreveu as suas impressões sobre o denominado Crescente Fértil, publicadas no livro “Syria: The Desert and the Sown” [ix]. Gertrude era conhecida pela sua beleza, assim como excelente arabista, arqueóloga e estratega. Conhecera Frederich Rosen em Teerão, e frequemente os dois liam e discutiam literatura árabe e persa. Esta é uma das cenas memoráveis do filme, quando se aproximam para recitar poesia. Gertrude Bell não foi predestinada a casar-se com um rei ou príncipe, como na maioria destas narrativas das mil e uma noites, o seu destino era muito maior, mais grandioso, cheio de coisas plenas, o de uma verdadeira rainha, criadora de mundos, a geógrafa capaz de conceber e dar ao mundo “um filho” chamado Iraque, que entregou à dinastia Hachemita. Getrude Bell recebeu a notícia do seu grande amor o major Charles Dughty-Willie, tinha sido morto na batalha de Gallipoli, na Turquia, em 1915. Em 1915, os Seviços Secretos britânicos convocaram-na para auxiliar os soldados contra o Império Otomano [x]. Getrude Bell é ainda conhecida nas palavras de Bernard Jerush como “a rainha do deserto-a mulher que inventou o Iraque” [xi]. Por ser mulher, e ter conhecimentos da cultura e dos hábitos da região, Getrude Bell pôde privar de perto com as mulheres dos líderes locais, e chegar até ao príncipe Faiçal Faiçal (1833-1933), que se tornou no primeiro rei do Iraque, e por essa razão ela é conhecida como “ a fazedora de reis”, ou simplesmente, “a mulher que inventou o Iraque” [xii]. Ao conhecer os contornos do deserto e por gizado em parte, os mapas da zona, Getrude Bell pôde entrar na porta principal do teatro de guerra, sem ser por favor, pois tornou-se um “elemento chave” para o sucesso da política diplomática do Império de Sua Majestade Britânica. Foi elevada ao posto de Secretária Oriental e incumbida de ajudar o major Persy Cox a governar a Pérsia. Gertrude, Cox e Lawerence formavam o trio de orientalistas ingleses que permitiram a vitória do Império Britânico no Médio Oriente, tendo definido as fronteiras de novos Estados-nação e de um novo equilíbrio de poderes. Por essa razão foram convocados por Winston Churchil para participarem na Conferência do Cairo, em 1921, a denominada “Arab Bureau”, em que redefiniram os rumos políticos da região, optando por tornar a Pérsia num Estado independente. Numa célebre fotografia, tirada no Cairo em 1921, Getrude Bell aparece ao lado de Winston Churchill e de T. E. Lawrence, montados em camelos, tendo como pano de fundo as pirâmides do Egipto. Foi de facto, na Conferência do Cairo que foram desenhadas as fronteiras da Síria, do Iraque, do Líbano e do atual Reino Hachemita da Jordânia, que ainda subsistem, com ligeiras diferenças, até hoje.

 Na verdade, manter uma colónia naquela região era muito dispendioso para os cofres ingleses, e a conselho de Getrude Bell, foi fundado o Estado do Iraque, tendo sido concedido o título de rei a Faisal, antigo líder da Síria, deposto anos antes pelos franceses [xiii]. Faisal I foi indicado por Getrude Bell pois ela acreditava que a sua linhagem hachemita poderia acalmar os ânimos das minorias da região, proporcionando unidade ao novo país. Faisal foi coroado a 13 de agosto de 1921 e todo o processo não poderia ter sido possível sem a sua ajuda. Conclusões “Senhoras, e senhores, apresento-vos Getrude Luwian Bell” Imaginamos a história de uma mulher que fundou um país, ajudou a criar um rei e recebeu de presente um museu. Sabia falar com os homens do deserto, foi conselheira de guerra, e ao mesmo tempo arqueóloga, topógrafa, viajante e montanhista. Se o cinema nos pode fazer acreditar em mundos exóticos típicos das expressões criadas por Edward Said [xiv], cheios de personagens vibrantes como Lawrence da Arábia, esta mulher não ficou atrás de nenhum homem, o seu nome ainda hoje é lembrado no deserto, e no Ocidente, nomeadamente, através do fundo documental das fotos que tirou no deserto, quer as de locais como a cidade romana de Palmira, recentemente destruída pelo grupo terrorista, o autoproclamado Estado Islâmico [xv], e hoje preservadas em Inglaterra. Gertrude Bell fazia todas estas viagens, sempre acompanhada pelo seu fiel cozinheiro arménio. “A Rainha do Deserto” foi a única a mulher a integrar o mais alto escalão dos Serviços Secretos britânicos, a participar em exaustivas viagens pelo deserto e a contribuir, diretamente, para a formação do Estado Iraquiano [xvi]. Os seus livros sobre o Médio Oriente são fundamentais para a compreensão da região, para novas investigações, ela trabalhou na diplomacia, aconselhou um rei e como este poderia governar dezenas de grupos e tribos de beduínos. Em troca, Faisal ofereceu-lhe o Museu de Bagdad, inicialmente constituído com acervo pessoal do rei e com
preciosidades da Mesopotâmia. Com a fundação da escola de arqueologia do Iraque, Getrude Bell pôde orientar pesquisas à vontade, trabalhando até ao final da vida com a mesma paixão de sempre. Por isso falar da “Rainha do Deserto” é falar de uma extraordinária mulher que escreveu livros, participou em expedições arqueológicas e escrevia-se com os maiores cientistas da época [xvii] . Gertrude Bell falava farsi, alemão e árabe com o mesmo à vontade com que falava a sua língua materna, o inglês. Numa das primeiras cenas do filme vimos um casal falar com uma rapariga dizendo-lhe o que constituía a norma da época: “Não deves assustar os homens com o teu saber". A máxima da época para uma mulher era casar, ter filhos, e educá-los. Jamais uma mulher poderia ter conversas ao mesmo nível que os homens, abordar política, e talvez por esta razão, Gertrude Bell ao chegar a Teerão, liberta-se, sente-se livre dos cânones o tempo; fica completamente apaixonada pelo mundo, pelas pessoas do deserto e ama a sua liberdade. Liberdade que ela não conhece, ou que pretende conquistar ao estar ao lado dos homens de igual para igual, o que aprecia as tribos beduínas do deserto [xviii]. Por essa mesma razão, Gertrude Bell ficará para sempre conhecida como a rainha do deserto, aquela que foi a mulher mais influente da história do século XX no Médio Oriente [xix].


Setúbal, 25 de julho de 2017

*Licenciado em História pela Universidade de Lusíada de Lisboa (2001) , pós graduado em História Contemporânea (2010-2011) O autor dedica este trabalho às mulheres da sua vida , mestras ( mãe Vitória Rosa Almeida , irmã , Marcela Almeida , sobrinha Clara Almeida José, em memória das suas amigas Leocádia da Conceição , Sónia Alexandra ,às suas avós Emília Rita Clemente , Antónia Zulmira Rosa , às suas professoras Isabel Enes Ferreira e Maria João Tomás.

 [i] Rich , Paul (ed.) Iraq and Getrude Bell´s –The Arab of Mesopotamia , Levington Books , 2008 [ii] The Letters of Getrude Bell, 2 vols , selecção (1927) [iii] O presente artigo fala do filme “ A Rainha do Deserto “ de Werner Herzog com Nicole Kidman , Robert Pattison , James Franco e Damian Lewis nos papéis de Gertrude Bell , T . E . Lawerence , e do Major Major Charles Dughty - Willie [iv] Berry , Hellen “ Gertrude Bell and the “ Women Question”in Newcastle University , 2016 [v] Horweb , Georgina (int ) A Woman in Arabia , The Writings of the Queen of Desert , Penguin Classics e The Desert Queen : The extraordinary life of Getrude Bell : Adventurer , Adviser to Kings , Ally of Lawrence of Arabia , 2016 , Berkeley ; La hija del desierto ( La extrardinaria vida de Getrude Bell , Georgina Howell, 2008 , 768 pp , ed. Lumen [vi] Ramon , Maria Dolors García “ Viajeras europeas en el mundo árabe : un análises desde geografia femenista y pos colonial “ , in Doc. Anual Geografia ,40 , 2002 , pp 105-.130 [vii] Short, Emme ““Those Eyes Kohl Blackened Enflame”: Re-reading the Feminine in Gertrude Bell's Early Travel Writing,http://dx.doi.org/10.3167/jys.2015.160102, pp 8-28 [viii] Cf Maria Júlia Ferreira “ Mulheres Geografas na história da geografia moderna “ In Olhares sobre as Mulheres , Estudos de Homenagem a Zília Osório de Castro ( coordenação de Irene Tomé , Maria Emília Stone e Maria Teresa Santos) , CESNOVA , FSCH- UNL , 2011, p.293 [ix] Bell, Gertrude “ Syria : The Desert and the Sown” ( 1909) [x] Herold , Bernardo Jerosh “Frederish Rosen , Orientalista , Diplomata e político , Primeiro Colóquio sobre a Grande Guerra “in Centro de Quimica Estrutural do Instituto Superior Técnico , 2015 , Academia das Ciências , pp4-5 [xi] Cf Idem , Ibidem [xii] Cooper, Lisa , “ Queen of Desert” , in Minerva Magazine .com , March/April 2016 , pp 20-24 ; Gertrude Bell & The archeology of Mesopotamia , British Archeology (March-April 2014) , pp38-41 ; “Better than Any Ruined Site in the World : Getrude Bell and the Ancient City of Assur” in Procedings of British Academy , 205 , 77-96 , British Academy , 2017 [xiii] Idem , ibidem [xiv] Edwar said , Orientalismo , Ed . Cotovia ,1995 [xv] Fundo Documental Gertrude Bell, New Castel , Jackson , Marc (organiz.) [xvi][xvi] Monroe , Elisabeth , “ Getrude Bell(1868-1926)Bulletin of BRitish Society for MIdle Eastern Studies ) , vol.7 , nº1 , 1980, pp3-23 ; Morato, Cristina Las damas de Oriente , Grandes viajeras por los países árabes , Ed . Bolsillo , 2006 , pp233-293 [xvii] Serrano , Sónia , Mulheres Viajantes ,Lisboa , 2014m ed . Tinta da China , pp 166—184 [xviii] Cooper , Lis , In the search of Kings and conquerors : Gertude Bell and the Archeology of Midle East , Ed . Tauris , 2016 [xix] O autor quer agradecer aos maiores especialistas sobre arqueóloga , política , Gertrude Bell ; A Rainha do Deserto no qual o filme se baseia , grande parte das cartas , fotos e documentos abordados no filme são parte do fundo documental da Universidade de New Castell na qual Wenerst Herzog se fundamentou , assim como Tilda Silton para o documentário Letters from Bagdad .