fanzine Tertuliando (On-line)

Este "blog" é a versão "on-line" da fanzine "Tertuliando", publicada pela Casa Comum das Tertúlias. Aqui serão publicados: artigos de opinião, as conclusões/reflexões das nossas actividades: tertúlias, exposições, concertos, declamação de poesia, comunidades de leitores, cursos livres, apresentação de livros, de revistas, de fanzines... Fundador e Director: Luís Norberto Lourenço. Local: Castelo Branco. Desde 5 de Outubro de 2005. ISSN: 1646-7922 (versão impressa)

sábado, julho 21, 2012

Cinzas*


CINZAS

Quanto mais flagelado um país, maiores as torturas infligidas. Duas horas da tarde. Trinta e nove graus centígrados. Agosto. Céu muito azul, mas só por cima. A linha do horizonte expande uma névoa que a ilusão atira para manhãs imersas em ondas de sal. Mas o mar fica muito longe. Trezentos quilómetros reduzem-nos à realidade das sufocações e da prostração. Progressivamente o céu azul deixa de o ser, e a névoa, cada vez mais densa, difunde-se, e o sol que era há pouco luminoso e límpido é agora marralheiro e turvo.

Subitamente acordamos da virtualidade e afundamo-nos no desespero do realismo fatal. Na crista da serra perfilam-se colunas espessas de fumo negro. Não tarda que os sentidos reajam ao cheiro insidioso a natureza queimada. O ruído de uma máquina voadora aguça presságios. Leva suspenso um gigantesco balde de água como a cegonha transportava o bebé das nossas ilusões pueris. Mas aqui, em lugar de nascer, mata-se. Os sanguinários da floresta rebentam todos os verões em cogumelos cada vez mais venenosos e perversos. São eles os protagonistas da vergonha, são eles os algozes de um país cada vez mais diluído na aridez e na apatia da resignação.

Já se ouve o grito sufocante das sirenes que, não tarda, roçarão os nossos sentidos em promessas de salvamento e solidariedade. Trazem homens pendurados, armados de machados com que tentarão desenterrar refrigérios para infernos que seres menores atearam. Ao ruído da sua passagem eleva-se a vozearia rude da sueca na esplanada da tasca mosqueirenta e lúgubre.

- Cubro com a manilha. E já ganhámos, parceiro! Mais uma rodada, oh, Manecas!

- Onde é que é isto hoje? Em Casegas? Porra, que é todos os anos a mesma merda…!

- É aquele a embaralhar.

- Filhos da puta, que mergulhavam todos de focinho na fogueira. Ah, carago, se eu mandasse…”

- É aquele a dar.

- Trunfo é paus.

- Os que já arderam, ou os que vão arder a seguir?

- Deixa-te de porras e joga, que já ganhámos outra vez…

- Não brinques com coisas sérias, Tomás.

- Não brinques? O que é que falta queimar? Onde estão os gajos que mandam? Agarraram o “Bexigas Doidas”, o ano passado, e já aí anda outra vez, de isqueiro no bolso. E todos sabem que não fuma, nem é para dar lume a ninguém. Sabes que mais? Porque é que não acabam de vez com esta palhaçada? Cá por mim, pode arder o resto, já hoje. Cortava-se o mal pela raiz. Pinhais e quintas para defender é coisa que nunca tive. Esses que se preocupem…

Quando o cepticismo e a indiferença passam ao lado da tragédia, e o instinto de reagir é embotado pela letargia do discernimento, nada mais conta que a acomodação e a placidez. Tudo o resto são reminiscências atávicas consolidadas na iliteracia cultural de um povo atolado em depressões recorrentes.

Agora é uma ambulância que aparece e desaparece na vertigem de fugas e prioridades. Sumiu-se na última curva da estrada que as alternativas governamentais farão derivar para aceiros envergonhados, ladeados de lixo florestal por limpar.
E a Natureza arde. A cumprir ciclicamente um mandato de morte anunciado. Mas eles estão lá. Farão o que puderem. Homens e mulheres em defesa, quantas vezes, de quem os maltrata. O cego mais cego é o que não quer ver. Meu Deus, e tanto cego por aí!

Sufoca-se. O vento cúmplice da desgraça arrasta consigo vagas de fumo cada vez mais negras e opacas. Cheira a fogueiras de um S. João calendarizado não há muito. O dia que amanheceu luminoso, prenunciador de sossegos e calmarias, um monstro o transformou num inferno de sobressaltos e angústias por resolver.

Alto de Silvares. As janelas abertas do automóvel deixam cair sobre o papel partículas de uma natureza a agonizar. Quisera juntá-las e devolvê-las à consciência dos psicopatas que se movimentam impunes a uma justiça inerte e bafienta. A impunidade é o meu desespero, e a hipocrisia política a minha náusea. Impotente, rodo a chave e arranco.

A noite chegou mais cedo ao acrescentar os seus negrumes ao céu de Inglaterra que se abateu, espesso e parado. Cisternas de bombeiros percorrem

na escuridão barragens, charcas e piscinas na busca autorizada do único elemento da natureza capaz de neutralizar com eficácia a fúria de um outro, seu irmão, aquele que mais depressa tudo reduz a átomos - o fogo. É uma luta fratricida, mas decretada por emergências que a aflição impõe. 

Duas da madrugada. As labaredas que o dia escondeu são as mesmas que agora mostram cristas aterradoras, cada vez mais próximas do que ainda está por arder. O lugar é comum, mas o cenário é, de facto, dantesco, e a luta, injustamente desigual. Mas eles continuam lá. Desistir não é o lema. “Vida por vida”. Até à exaustão. Até caírem para o lado.

Ninguém dorme. Como dormir com o inferno à porta?! Estendem-se mangueiras e molham-se quintais. A lua, quase cheia, pouco ajuda, incapaz de romper a impenetrável massa de fumo. As forças minguam, tal como o vento parece ter amainado. Milagre? Pode ser. O turbilhão de chamas recrudesceu. Como a fera do circo a recuar, cobarde, ao som do chicote do domador.

Daqui a pouco é novo dia. A manhã romperá vestida de cinzas poisadas em chãos fumegantes. Os primeiros alvores trazem recados pungentes de dor e desolação. A tragédia abatera-se sobre quem toda a vida foi abnegado e justo. Cortes e pardieiros reduzidos a escombros ainda em combustão albergam corpos calcinados de rebanhos e animais de lavoura, único sustento de gente pobre e crucificada. Olivais promissores, irremediavelmente perdidos. Porcos a engordar até ao ano que vem, complemento único de uma subsistência magra, jazem carbonizados. Hortas e vinhedos que, por caprichos ou necessidades, eram o orgulho de quem com sacrifício os amanhava e amava, o lume os reduziu completamente. Cerejeiras e pessegueiros onde melros e toutinegras ainda ontem trinavam hinos à natureza, morreram (de pé!), de cotos apontados a clamar justiça. De duas casas de habitação, restaram as paredes, e nos quintais ficaram a carcaça de um carro velho, os alcatruzes retorcidos de uma nora secular e os aros das rodas de uma carroça antiga. A casa de amarelo era o património único de um emigrante modesto a compor a vida em França, porque o país do berço tudo lhe negou até aos trinta e cinco anos. Não resistiu à derrocada emocional. Cometeu o suicídio, soube-se depois. Desesperos e solidões ditaram-lhe um bilhete que deixou escrito. No final, a expressão de um desejo último: ser sepultado na terra que o acolheu. Nem na morte quis regressar.  

Não passaram muitas horas para que os jornais e as televisões abrissem com a fotografia de um jovem de vinte e nove anos de idade. A farda de bombeiro e o olhar resoluto fixado em auroras prometidas identificavam uma vida que acabava de soçobrar à insanidade de especímenes que de humanos têm apenas a forma anatómica e nenhuma lei teve ainda a coragem de extinguir de vez…

Em tudo quanto foi terra de gasómetro e silicose a atmosfera continua de cinzas, e o sol, vestido de luto. As mulheres redobraram o preto e choram em grupos de corvos. Os homens, acocorados sob um castanheiro velho, de ouriços a abrir, consomem cigarros em baforadas de raivas e impotências por resolver há muitos, muitos anos. Os cães, esses seres extraordinários que tudo pressentem e entendem, lançam interrogações em latidos lúgubres que se fundem no ronco de um helicóptero em manobras de rescaldo. 

Por entre silêncios e palavras que não saem, acorrentadas ao nó da garganta, a tarde avança, pesada. Com ela recuam sonhos e projectos para longes sem regressos. Os velhos já nada pedem à vida, e os novos são aparições fortuitas e fugazes.

Ao cair da noite, suspensa das traves de uma adega escura onde repousa o vinho acidulado e fresco, uma corda grossa balanceava o corpo ainda quente de um homem de cabelo grisalho e barba por desfazer.

Ontem, à sueca, ele não tinha herdades nem pinhais para guardar. Agora, de olhos esbugalhados e vidrados no vazio, embala no charco da matéria um filho morto, mas muito vivo além, porque apenas transpôs o território onde campeia a imperfeição humana.

Dos dois só a memória dele perdurará. 

 *Fernando Serra

Nota editorial:
Texto enviado pelo autor.

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