fanzine Tertuliando (On-line)

Este "blog" é a versão "on-line" da fanzine "Tertuliando", publicada pela Casa Comum das Tertúlias. Aqui serão publicados: artigos de opinião, as conclusões/reflexões das nossas actividades: tertúlias, exposições, concertos, declamação de poesia, comunidades de leitores, cursos livres, apresentação de livros, de revistas, de fanzines... Fundador e Director: Luís Norberto Lourenço. Local: Castelo Branco. Desde 5 de Outubro de 2005. ISSN: 1646-7922 (versão impressa)

segunda-feira, março 29, 2010

As Lágrimas do bairro salgado *

Todos os dias tenho o mesmo sonho. Sempre o mesmo sonho. Passo pelo magnífico bairro salgado e contemplo toda a sua decoração exterior. Azulejos azuis com cenas bucólicas,eternecedoras, familiares,e ao longe vejo a cabeça de uma mulher que me chama. É estranho como uma cabeça que sai de um cenário de teatro que me grita para conversar com ela. Diz-me que quer falar comigo. Acho estranho.Julgo estar doente ou louco , mas estou a dormir por isso creio ser possível este ser poder falar comigo. Pergunta-me se pode falar comigo,diz-me que está muito sózinha e que há muito tempo que não fala com ninguém ou na maioria das vezes as pessoas não conseguem ouvir os seus chamamentos. É nesse instante que aquela mulher me pede para a ouvir sabe que ninguém jamais poderá ter acesso à história daquele bairro e pede-me total confidencialidade para não revelar a fonte.
Aquela mulher pede-me que olhe bem para aquela rua, para os azulejos, as portas, janelas, tudo aquilo que me pareça mais estranho. Nesse instante dá-se um estranho acontecimento viajo 100 anos antes a a mulher que estava à minha frente transforma-se numa burguesa instruída contrariando as senhoras da época .Nessa altura deu-se um grande movimenrto artístico chamado Arte Nova. Esse movimento espalhou-se e desenvolveu-se tendo características nacionalistas de cada país.Em Portugal este género de arte teve pouca influência e em Setúbal apenas algumas ruas da cidade como o Bairro Salgado e a Avenida Luísa Todi foram projectadas segundo os desígnios de um grupo de arquitectos da época. Portugal adoptou o termo Arte Nova do francês Art Noveau .Assim como este bairro que nos encontramos: O Bairro Salgado. Foi aí que observei azulejos azuis e brancos com cenas do quotidiano ,essas mesmas casas são unifamiliares , onde habitará uma familía. Intelectuais, empresários, armadores eram os habitantes que se alojaram no resort.
- Neste bairro, disse a estranha mulher . Foram lançadas as bases do progresso de um grupo pensante que tentava proteger-se da maioria da população, os operários, os barulhos, os cheiros das fábricas. Eram no fundo os arruaceiros . Antes tudo misto era um enorme campo cheio de quintas que se projectava até ao mar. As comunicações eram feitas eram difíceis e morosas. Daí que o comboio veio permitir um desenvolvimento maior da nossa cidade, trazer capitais estrangeiros que derma origem ãs fábricas de conserva, também foram através desses meios que circularam as ideias, as pessoas que se encontravam e projectaram um bairro. O bairro que aqui vemos. Todas as suas ruas foram planeadas, estruturadas, como se fossem desenhadas num papel, ligadas e trazer todas as suas suas inovações. Foi neste bairro que se concentraram alguns dos melhores exemplares de arte nova. Deste bairro casas com fachadas de azulejos azuis e brancos com representações familiares, algumas com raparigas em idade de casar. Esses azulejos tinham uma proposta muito subtil que levaria à junção de fortunas e títulos que dariam a ordem natural das coisas.

Pouco depois regresso ao tempo actual e a mulher que me falava: a cabeça da República era um elemnto característico da arte nova. Hoje em dia o bairro salgado é um a sombra daquilo que foi outrora. Este bairro é hoje em dia habitado por idosos e os edíficios revelam maus tratos levados a cabo pelo seus proprietários referentes ao património. Procuro então saber mais sobre aquele bairro, sobre aquela mulher misteriosa que me alertou para os estragos feitos pelo abandono. Vou ã biblioteca municipal, ao Museu Michael Jacometi, tento ir à Câmara e nada… apenas me perguntam se investigador, se estou a fazer mestrado ou doutoramento para alguma universidade… Depois é difícil saber mais sobre esta história centenária e muita coisa se perdeu . Será que algum dia vou conseguir revelar a minha fonte? Saber que a vi diversas vezes?
Será que vos posso fazer uma revelação assustadora? Por vezes sonho que essas casas estão assombradas e que os seus habitantes desejam continuar ali e que as suas memórias sejam recuperadas , mas não sabem fazer manifestações. Como é que se pode mostrar às pessoas que precisamos de ajuda?
- Não sei , respondo à misteriosa mulher.
-Tens que dizer às pessoas que nós precisamos de continuar aqui , de vos mostrar como eramos, os nossos edifícios , nem que para isso seja necessário provocar mais sismos…
- Foi você que provocou aquele sismo de Dezembro? –perguntei cada vez mais atónito.
- Sim, diz-me ela. Vocês não fazem greves por melhores salários, por melhores condições de vida, fazem manifestações por aquilo que acreditam. Pois então nós também o fazemos mas através dos fenómenos naturais. Peço-lhe que divulge esta mensagem.
- Não sei, vão dizer que sou louco.
- Não, as pessoas gostam de viver assustadas e se lhe disser que ali vivem vampiros, vai ver que as verbas para a recuperação dos edíficios do bairro salgado…
Nesse instante acordei. Oh meu Deus, mulher misteriosa, revelei a minha fonte .Por isso , não esqueçam o pedido da mulher do meu sonho. Não se esqueçam de divulgar o estado deste bairro, façam um movimento pela memória daqueles que ali viveram e que ali existe história.

* Parte deste artigo foi publicado em formato papel no jornal "Sul".