fanzine Tertuliando (On-line)

Este "blog" é a versão "on-line" da fanzine "Tertuliando", publicada pela Casa Comum das Tertúlias. Aqui serão publicados: artigos de opinião, as conclusões/reflexões das nossas actividades: tertúlias, exposições, concertos, declamação de poesia, comunidades de leitores, cursos livres, apresentação de livros, de revistas, de fanzines... Fundador e Director: Luís Norberto Lourenço. Local: Castelo Branco. Desde 5 de Outubro de 2005. ISSN: 1646-7922 (versão impressa)

domingo, novembro 04, 2012

Canto a Nossa Senhora das Matas, de Cyro de Mattos

Novo poema enviado pelo seu autor:


Canto a Nossa Senhora das Matas


Cyro de Mattos*



Já estão alegres os bichos
da bem-amada nas serras,
chão de cardo brota a flor,
tronco morto vira árvore,
o gavião manso amanhece.
Tudo é canto pelos ares,
lábios que o beijo acendem
no seio fresco da mata.
Tom suave adorna o dia,
ramo de luz sempre verde.
Jasmim tecido no sonho,
fruta doce no colo virgem.
Riacho quando mina na pedra
passa sereno na baixada,
nave da noite com a lua
no areal derrama prata.
Formosa serrana, diáfana,
não há trégua nesses ais,
cardumes morrendo à toa,
a cachoeira chorando suja.
Sob as asas maternais acode
o sol pálido que tosse,
o índio extirpado da taba,
os passarinhos na gaiola.
Arminho protetor do filhote,
dia de flor de laranjeira,
na haste suspensa e leve
reabre, senhora, passo de baile
do beija-flor com a rosa.
Já não sai do oco a coruja,
do azul a garça como noiva,
carcará não pega, mata e come.
Jacaré não choca na lagoa
e a memória do couro abala
o meu ser ferido de desejo
das águas puras e profundas.
Mastruço, capim-santo, alfazema,
alívio de repetidas penas,
cura-me dos grandes clamores
nas visões da flora exilada,
nas ruínas da fauna sombras.
Desde nosso irmãozinho grilo
na relva da macia madrugada
ao rumor azul das andorinhas
quando vinha a Primavera
trissando a manhã luminosa.
A alma flamante dos girassóis
e o sabor das goiabas maduras.
Quando a mata for deserta,
não mais se colher a flor,
o rio se esconder da chuva,
a terra dormir amarga
e de Deus não cair a lágrima
será esta a triste música?
Nessa luta contra o mal
pelos quatro cantos do sol,
pelos quatro prantos da lua,
te fazendo verde nas nuvens
molha a vida fera e solitária.
Ó abelha misericordiosa,
pousa em mim a esperança,
em cada palma da mão
a operosa colméia sonora.
Guardiã do mico-leão,
tamanduá-bandeira, chorão,
quero-quero, preguiça,
ararinha azul, anta.
Embora fujam do verde
odores do que me encanta
além o azul inocente ressoa.
Penetra-me de vento e chuva,
hora telúrica de outrora,
com que emoção bendizia
mão cheia de rações várias,
no crispar de casulo sopra
ajuste de brilho na fábula,
sinais de frescor na amora.
Afugenta o raio assassino
como a corça diante da onça.
Diz-me: nunca mais! nunca mais!
Equilibra frêmitos e lamentos,
os animais vivem à sua maneira
como simples notações do amor.
Em teu percurso de planta
o dia e a estrela clareia,
desarma na capoeira o alçapão,
apaga o fogo na queimada.
Ó seda levando voz perfumada,
sol, chuva, arco-íris, aurora.



*Cyro de Mattos é poeta, contista, novelista, cronista, autor de livros infanto-juvenis e organizador de antologia. Já publicou 38 livros e, entre eles, Os Brabos, contos, Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, e Cancioneiro do Cacau Prêmio Nacional de Poesia Ribeiro Couto da UBE (Rio) e Prêmio Internacional Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália. Finalista do Prêmio Jabuti três vezes. Obteve Menção no Concurso Internacional de Literatura da Revista Plural, México. Possui também livros publicados em Portugal, Itália, França e Alemanha. O poema “Canto a Nossa Senhora das Matas” pertence ao livro Cancioneiro do Cacau, Ediouro Publicações, Rio de Janeiro, 2002, e à antologia do mesmo nome, edição da Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador, Bahia, 2004, com tradução de Curt Meyer Clason para o alemão.

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