Memórias
Procurei na Idade Média as histórias de príncipes
e princesas, mas depressa descobri que a Idade Média era muito mais do que
isso, era muito mais do que aquela noite dos mil anos que me tentaram um dia
vender. A Idade Média está acima de tudo nos atalhos que os investigadores fazem
para encontrar as pessoas que lá estão nos buracos, nos infernos, purgatórios e
paraísos da manhã de ontem. Olhei então para o mar e tirei um cigarro da mala.
Ando a fumar imenso. Quando vejo Titas, enervo-me bastante. Penso na forma como
irei falar com ele quando o encontrar, porque me irrita aquela forma que ele
tem de olhar, de que o mundo é todo dele. Sim, ele é o meu príncipe. Ele tem
tudo o que me irrita. É de Esquerda, é a favor da despenalização do aborto e eu
não sou, não quero aceitar a morte de um inocente. Pronto! Não aceito a morte
de um pessoa que está numa cama, nem me venham com as histórias da legalização
das drogas leves. Mas Titas beija bem. Consegue hipnotizar-me! Ainda me lembro
de ir ver ao cinema filmes que nem se quer gostava só para o ver, sentir a sua presença.
Estar sentada ao pé dele. Sabia que ele gostava de outras pessoas, que preferia
a companhia dessas pessoas à minha, mas eu esquecia tudo e queria acreditar que
um dia ele viria ter comigo trazer-me um ramo de flores, ou de uma outra forma
mais guerreira me levaria nos seus braços e me raptaria. Estaríamos os dois a
fazer amor e depois comentaríamos qualquer coisa. Olharíamos o nascer do sol e beberíamos
um café pela Baixa. És tão falso, Titas. Só de me lembrar que me deixei enrolar
pela tua conversa da treta, de fumar um charrinho para ter um minuto de atenção.
Os homens não prestam. Mas hoje sei que me amavas e que essa era a sua forma de
agir com todas as pessoas. Aquele sorriso desconcentrava-me completamente!
Bastava-me vê-lo e ficar de rastos!
Não sei o que se está a passar comigo mas desde
algum tempo para cá cada vez que olho para as representações de D. Sancho I
vejo unicamente uma pessoa: Martim ou Titas no melhor dos casos. Lembro-me sempre
dele cada vez que pego na tese, há qualquer coisa que não está a jogar bem. Bem
sei que a sua morte não me deixou nada bem, acredito que por vezes nós temos a tendência
para exigir, para reclamar. Fui usada por ele, ou eu usava-o para deitar fora a
minha tensão que sentia na altura da Faculdade. Encontrávamo-nos no mesmo café
onde agora estou, e ele falava-me de que eu era uma menina mimada, nunca olhara
para a história medieval do ponto de vista dos vencidos e falava-me da história
escrita por Álvaro Cunhal, descrevia-me os relatos de Fernão Lopes das lutas de
1383/1385 que eram a base do povo, das lutas, dos pormenores onde se via o
princípio da descrição de um grande escritor. Apesar das nossas diferenças Titas
completava-me, tinha-me dito um bruxo que, um dia, o meu grande amor decidiria
mudar a minha vida, fazer uma introspecção. Ele dissera-me que nós nos
completávamos mas nunca teríamos a mesma opinião. Hoje acredito nisso! A vida
encarregou-me de trazer as recordações como se estivessem expostas numa bancada
de um hipermercado à mão de semear. Gostava de sentir a sua pele de bebé, o seu
rosto de manequim e a sua aparência de dandy. Fascinava-me o seu aspecto de revolucionário,
talvez tenha esse aspecto que veja agora em Sancho I. Ele era agora o meu menino.
Via-me ali com ele a falar, enquanto observava agora os namorados a falarem apaixonadamente.
Arrependera-se de não ter tido um filho dele pois acreditava que ia ver
renascer a cara do pai no seu filho, pois tal como diz a tradição os filhos são
a continuidade dos pais. E agora estava ali a saborear recordações. Estava na
Idade Média. Fixara-se na figura de um homem, porque como lhe dizia a sua amiga
Muema que D. Sancho I era a cara de Martim. Sim, ele era o filho que ela não
tivera dele, porque era demasiado pudica ou epistolar. Ficava-me pelos e-mails,
quando no fundo tinha uma enorme vontade de o olhar e dizer que o odiava.
A última vez que nos encontramos na faculdade
virei-lhe a cara, queria fazer-lhe sentir que ele não me dizia nada, mas Titas
era sempre um presente para os olhos onde quer que o visse. E agora estou aqui
a matar-me aos poucos! A fumar! A sentir este sabor a nicotina como se estivesse
a pedir à morte ou a qualquer ser superior para me vir buscar em suaves prestações.
Martim. Talvez tenha sido a tua ousadia que me fez pensar na minha vida, quando
tu me disseste nesta mesa que eu queria investigar a figura de um rei apagado
porque os meus pais desejavam um homem e não uma mulher! Como aquilo mexeu
comigo! Agora bebia o café e aquele líquido na minha boca tinha um sabor
estranho não me sabia tão bem como acontecia normalmente.Sancha sentia estranhamente que a observavam ao
longe, talvez alguém que não via há muito tempo.Ao ver o mar sinto uma segurança nunca vista, um universo
capaz de trazer compensações que nestas alturas as memórias fazem doer, uma
espécie de caixas de mágicos onde as facas nos vão entrando na alma e isso faz
parte da memória, cada parte uma mais afiada que outra. Aqui e ali a dor é una.
Um dia ao falar disto a Moema senti que Sancho I e Titas são o mesmo não sei
porque me deu esta ideia, mas foi como se alguém se me preparasse uma armadilha
para enganar a morte de Titas. O que Titas me havia dito naquela tarde... Agora
eu tinha um único pensamento, estudar Sancho I era uma forma de manter a memória
de Titas/Martim vivo.
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