fanzine Tertuliando (On-line)

Este "blog" é a versão "on-line" da fanzine "Tertuliando", publicada pela Casa Comum das Tertúlias. Aqui serão publicados: artigos de opinião, as conclusões/reflexões das nossas actividades: tertúlias, exposições, concertos, declamação de poesia, comunidades de leitores, cursos livres, apresentação de livros, de revistas, de fanzines... Fundador e Director: Luís Norberto Lourenço. Local: Castelo Branco. Desde 5 de Outubro de 2005. ISSN: 1646-7922 (versão impressa)

sábado, março 22, 2014

A recuperação do duplo através dos gémeos Willian e Wilson em "Do fundo do poço se vê a lua"


  A marca da tragédia sempre pairou na cultura judaico-cristã na qual encontramos as nossas origens e identidade.Uma das primeiras alusões é a história de Caim e Abel, que encontramos nos mitos do Antigo Egito, nomeadamente através de Seth e Osíris, nas obras "Ísis e Osíris", de Plutarco, e "Conto dos Dois Irmãos", das narrativas do Egipto faraónico.As origem da cidade de Roma deve-se a uma loba que amamentou dois irmãos gémeos que se degladiaram e mataram pelo poder. A nossa escolha pelo romance do escritor Joca Reiners Terron "Do fundo do poço se vê a lua", aborda este mesmo universo. O medo da tragédia do outro, do duplo e dos irmãos gémeos e nesse sentido a obra que pretendo analisar situa-se precisamente na busca da identidade.  Ao longo da obra de Reiners Terron somos invadidos por uma onda de curiosidade pela descoberta do ser humano e da nosso própria identidade, por isso centramo-nos na questão que colocamos desde tempos imemoriais: Quem somos nós e o que procuramos?A narrativa de Reiners Terron sobre o drama de dois gémeos é atravessada pelo medo da morte e necessidade de justificação da mudança de um corpo através do sexo, sob a ameaça de um irmão matar o outro. Acresce a este pesado universo o facto de o pai ser encenador e tudo decorrer num ambiente teatral propício a equívocos e ao uso de máscaras.Esta história traz-nos reminiscências das escritas por Plutarco que recontou as narrativas tradicionais egípcias. William tinha pavor de ser morto por Wilson, à semelhança das histórias encenadas pela companhia de teatro do pai. Como encenador, o pai procurou dissecar as narrativas sobre o poder e a submissão dos gémeos. Neste sentido toda a história do teatro centra-se no medo e na catástrofe iminente. 

Nós, porém, encontramos paralelos entre a História e a Literatura. Ao escolher um autor brasileiro tivémos que tomar em atenção uma obra centrada numa narrativa árabe e na perspectiva da realidade árabe, daí a escolha do romance "Do fundo do poço se vê a lua". 

Joca Reiners Terron nasceu em 1967 é licenciado em design industrial, mas com vasta obra na área da literatura. Os temas dos seus romances centram-se na violência, na dupla personalidade (no caso os gémeos), o terror psicológico e as relações das pessoas com os seus próprios medos e inquietações.
O romance em apreço é certamente desconhecido da maioria do público português, pois foi publicado no blog "Amores Expressos", em que, na sequência de uma viagem ao Cairo, em 2007, registava diariamente a sua opinião e os seus comentários.Este blog deu origem a uma coleção homónima da editora Companhia das Letras, na qual já publicaram 10 autores brasileiros, entre els, Joca Reiners Terron vom este romance, falatndo ainda publicar seis escritores.De Joca Reinners Terron está publicado em Portugal o livro de contos "Curva do Rio Sujo", pela editora Palavra.

A história dos dois irmãos, William e Wilson, não é só uma revisão da história do duplo, isto é dos gémeos desde a Antiguidade pré-clássica até ao século XIX, mas ao mesmo tempo em Wilson existe um pavor na morte e no crime de um dos irmãos tal como as histórias ancestrais de Caim e Abel, de Seth e Osíris, e de Rómulo e Remo. Para além dos aspectos traçados para a análise desta história, o Egipto Antigo modela a minha teoria do duplo, da morte e da transformação, como as narativas do país dos faráos entre as quais "Ísis e Osíris" de Plutarco, e do "Conto dos Dois Irmãos".

Como não há duas sem três, acrescente-se a presença de Cleópatra, não só como Rainha do Egipto, da linha dinástica dos Ptolomeus, da qual foi a última, tendo-se suicidado. Neste caso, o nome de Cleópatra tem um duplo sentido, não só como nome de código da mãe de Wilson e William durante a ditadura militar, mas como exemplo de mulher, guerreira, líder e estratéga como foi a última Rainha do Egipto Antigo.Ao morrer jovem, a mãe dos gémeos deixou uma imortal, presente nas recordações da "jovem Cleópatra", nome adoptado por Wilson quando decide mudar de sexo. 

Este é um dos pontos mais significativos do romance "Do fundo do poço se vê a lua": Quando Wilson se torna Cleópatra ao mudar de sexo, trata-se, ressalve-se, de uma transexualidade psicológica. Wilson temia morrer como nas histórias que encenava em pequeno com o seu irmão no teatro que o seu pai dirigia. Ao ler e conhecer esse género de histórias, tomou a decisão de mudar de sexo, para que não tivesse uma morte imediata, ou acabar por ser abafado pela figura do irmão. É desta forma que a narrativa se torna numa espécie de convite ao exótico, e ao Egipto atual.Wilson transformado já em Cleópatra, na figura imaginária da atriz Elisabeth Taylor, que encarnou a Rainha egípcia na 7.ª arte, numa postura de grandiosidade e na fantasia de uma mulher bela e ao mesmo tempo fascinante, mas acima de tudo na mensagem do postal que ele envia ao irmão William: "Para o visitar no Cairo e o conhecer".É aqui que se inicia toda a história, no reencontro dos dois irmãos, que é como um romance de viagens e uma justificação de todas as fugas. Não das fugas banais, mas aquelas profundas e metafóricas, relacionadas com um país, primeiro com a transfiguração através da teatralidade, e também do poder, pois na Antiguidade Egípcia, mais propriamente durante o Império Novo, recorde-se, a Rainha Hasepsut se havia travestido de homem, usando as mesmas insígnias do Faraó. Para esse papel aquela mulher apagou-se e tornou-se num homem. 

Embora aqui se trate de um contexto diferente, há uma forma de poder ligada à metáfora da libertação pelo contrário da mulher. Daquele que não se sente bem dentro de um corpo que não sente como seu, e de uma pátria na qual nunca se sentira como livre.O Egipto na atualidade mais recente esteve até a finais do século XVIII sob domínio Otomano e foi alvo da cobiça imperal francesa de Napoleão e de Londres. Que só lhe concede a independência em 1922, conhecendo a monarquia de Faud que termina na década de 1950, num golpe militar liderado por Nasser que tonmou as rédeas do poder até 1970 quando é sucedido por Sadat que foi assassinado por militares em 1981 tomando o poder Mubarak, referido pela imprensa internacional como "o faraó".É neste contexto que vamos encontrar um Egipto pobre, corrupto, onde o narrador conta as visitas a alguns locais, quase uma vigem interior/psicológica, não tocando nos assuntos, mas apenas parte das diferenças para nos fazer pensar que a literatura de viagens é uma literatura de interiorização de descoberta . 

Assim sendo este romance toca sobretudo na "desilusão do cliché", da esperança da grandiosidade de um Egipto que já não existe, mas que a tragédia não só é caracterizada no nome de uma personagem, ou de uma figura, quer seja no corpo de um homem ou de uma mulher, na simbologia do próprio país, do que esperamos de um mito, de uma lenda e de um corpo na aceção farónica em que o seu corpo era a própria instituição, o palácio que albergava a alma daquele que incarna o deus Horus. Assim todas as memórias do Egipto interior de Cleópatra estão dentro dela através das lembranças, das brincadeiras de Wilson com o irmão que trazem reminsicência da história antiga do Egito, tantas vezes cobiçado e invadido, como alguém que invade o outro, o toma como seu. 

Ao mesmo tempo podemos atribuir a esta narrativa um perfil psicológico entre a narrativa de viagens que se desalinha desde o momento em que Wilson decide mudar o seu corpo pela carga trágica que o seu duplo lhe propõe, e como toda a história entre o poder e a necessidade de viagens acarreta uma catástrofe, levando-nos até aos primórdios da viagem. É na procura dessa verdade que William procura o irmão ao receber o seu postal, do agora Cleópatra, uma mulher, e deverá reencontrar-se com o irmão/irmã; é aqui que nos inserimos mais uma vez entre uma realidade dura, onde se impõe olhar para a verdade com algum cuidado para que a tortura das recordações mais dolorosas sejam apenas ditas com apurada sensibilidade, pois estamos perante duas pessoas idênticas apenas no sentido físico e não psicológico. 

Se o psicológico está aqui patente ao longo de toda a obra, o autor evoca aqui a sua admiração e homenagem ao escritor norte-americano Edgar Allen Poe, sendo através de um conto desse autor "William/Wilson", que constrói o esqueleto deste romance. Como se ele fosse uma espécie auto-análise de Wilson para justificar o encontro dos dois irmãos e lhe explicar as razões do seu desaparecimento.

Há aqui um enquadramento típico do enredo policial como se o assassino se revelasse perante o público para explicar o assassinato. Mas esta "morte" que Wilson premeditou não é uma morte qualquer, é uma morte psicológica. Uma morte desejada, uma eutanásia simbólica que coloca todo o pensamento Ocidental na cultura dramática do teatro grego que aqui faz um apelo à viagem da Duat (a viagem dos mortos no Antigo Egito), como se tratasse de uma nova representação. Tal como na história de Seth e Osíris, o crime cometido por Seth contra Osíris termina com o corte do seu membro viril. Da mesma forma que Wilson ama e odeia o irmão William, é ele que antecipa a morte, o crime, ao anular-se a si mesmo, transformando-se no seu ídolo da juventude, da sua vontade interior e em recuperar a mãe, Cleópatra, do baú da memória e de se modelar através das roupas guardadas em casa, assim como as fotografias.

Neste romance nada é deixado ao acaso, se o nome pode parecer inicialmente um mero apetrecho técnico do contra-regra, da bilheteira para a civiliação que o autor Joca Reiners Terron, evoca a importância do nome próprio para os Antigos Egípcios. Para o Egípcio da Antiguidade, o nome era um estado de alma, uma essência do seu ser, daí que o nome tivesse muito mais que um mero travão de ideias para este Egipto Contemporâneo. Mas, o autor vai muito mais além ao escolher o nome de Cleópatra, não é só a última Rainha digna de memória que luta perante um país já na mais considerável miséria, como se de uma grande personagem teatral se tratasse, mas também porque é através dela que Jean François Champollion descobre a cartela de Cleópatra no Forte de São Julião da Roseta. Será a partir dessa pedra que se dá inicio à egiptologia científica, mas também o reencontro com as grandes mudanças das vidas dos dois irmãos. Ao retomar esse convívio entre os dois irmãos , o reencontro de uma narrativa pela posse de território, há uma resposta para a luta dos dois irmãos pelo primeiro lugar. Ora, se num deles o irmão quer acabar com o outro, determinando a morte de um deles, haverá ao longo das narrativas anteriores expressas também nos contos dos "Dois Irmãos", em que Bata e Anúbis se reanimam várias vezes através de vários reencontros, sendo abafados pela intriga da cunhada de Bata, esposa de Anúbis, que traz um sabor à narrativa de telenovela, em que a mentira sobressai para que não seja revelada a verdadeira intenção da esposa de Anúbis: o amor pelo cunhado. Esta rejeição, que está no aparato de uma encenação, que a irá livrar da verdade. A vida e a morte sucedem-se ao ritmo de um conto de ficção, morrendo Anubis sucessivas vezes, até que a cunhada de Bata engolhe um farpa que a trasnforma em criança que revelará, inocentemente, toda a verdade.

Se o sentido da morte, da vida e da transformação já abordado por Betteleim, em "A psicanálise dos contos de fadas", aqui estamos perante o desejo e o sexo, e as mortes sucessivas serão a mudança da infância para a idade adulta, e, ao mesmo tempo, da escolha do parceiro/a. Aqui o caso será outro é a relação e o amor entre dois irmãos, da sua vontade de se reencontrarem ao fim de tantos anos. 

Cabe aqui falar num país olhado não só pela grandiosidade que teve, mas pela sua própria cultura patrimonial, evocando ao mesmo tempo, aquilo que era o termo filológico da palavra faráo, peraa, "a grande casa". O palácio é na sua essência, o corpo, o espelho da alma, a representação de uma figura de Estado, e, ao mesmo tempo escolheu-se a última grande figura de Estado, sendo ela uma mulher que lutou com todas as suas forças, da mesma maneira que a mãe de William e Wilson faleceu quando ainda estes eram crianças. Mas esta mesma justificação faz um apelo à antiga KMT (terra vermelha, o Alto Egipto) e DRT (terra negra, o Baixo Egito). A terra negra e a terra vermelha, possivelmente, o feminino e o masculino. A contradição, o corte do membro viril, a auto-mutilação e a busca de si mesmo, em viver no corpo do outro.

É essa a essência da literatura e do teatro, procurar decifrar as nossas raízes e ao mesmo descodificar aquilo que está para lá das entrelinhas, assim como o nome e o título deste livro: "Do fundo do poço se vê a lua".