fanzine Tertuliando (On-line)

Este "blog" é a versão "on-line" da fanzine "Tertuliando", publicada pela Casa Comum das Tertúlias. Aqui serão publicados: artigos de opinião, as conclusões/reflexões das nossas actividades: tertúlias, exposições, concertos, declamação de poesia, comunidades de leitores, cursos livres, apresentação de livros, de revistas, de fanzines... Fundador e Director: Luís Norberto Lourenço. Local: Castelo Branco. Desde 5 de Outubro de 2005. ISSN: 1646-7922 (versão impressa)

sábado, outubro 21, 2006

Poesia Contemporânea*


Uma decepção mais ou menos esperada, esta a dos poetas mais recentes (a geração daqueles que, atacando o género do romance, peca por excesso de pretensiosismo). Continuo a aceitar como excepção um Carlos Alberto Machado (de quem ninguém fala), verdadeiro oásis no centro de tanta superficialidade literária. Lido um dos mais recentes de Manuel de Freitas, sobre uma pretensa incursão cabo-verdiana (Cretcheu Futebol Clube, Assírio & Alvim, 2006), pensei: que dirão os cabo-verdianos sobre isto? A quem interessa verdadeiramente esta poesia? Aos amigos; ou a qualquer grupo de adolescentes da periferia, a quem certos glossários sabem como sumo tropical?
Sem escapar a múltiplos lugares-comuns, versos musculados e referentes deslocados para o arquipélago das hispérides, que tentam sugerir-nos outro paradigma, a poesia de Manuel de Freitas, neste Cretcheu não afugenta uma mosca. Talvez nem tenha essa pretensão. Porém, fica um travo amplo a mistificação entediante (deveremos consultar os glossários de Manuel Lopes, de Manuel Ferreira, ou ficarmo-nos pelo sofá?). Manuel de Freitas começa a distinguir-se por ser um poeta das relações urbanas, das noites mal dormidas, das seriações onomásticas de amigos (por quem exagera nos envoi), dos véus que não levanta e que ocultam uma maturidade ficcionada ou mesmo uma mal disfarçada imaturidade. Terá o autor vivido as vidas que nós perdemos, como certas caricas de Rimbaud?
Cotejando a obra deste autor com a de João Vário, por exemplo, que é um cabo-verdiano universalista, percebemos como é fácil promover a mediania e obliterar o génio. João Vário (Timóteo Tio Tiofe ou João Varela) é um inequívoco superlativo literário a que a grande maioria dos poetas portugueses contemporâneos nem de longe ambiciona igualar (é que a estes faltam certos atributos como erudição, vida, oficina). A densidade poética da série «Exemplos» (Coevo, Dúbio, etc), de valores intelectual, ético e literário inestimáveis, fazem de Vário um poeta iluminante, ainda que se mantenha à margem das instituições literárias portuguesas, bem como da crítica. A sua escrita é preciosa, porque densa, mística, épica e bíblica. À mistificação responde com o mito, à realidade forjada responde com o cosmo humanitário, à leviandade boémia responde com a questionação ética.
Manuel de Freitas procura a honestidade de revelar a mentira: «Apanhámos outro táxi,/ talvez demasiado bêbedos.». Para João Vário, a verdade é uma busca incessante: «É esse tormento ou essa luz,/ que divide ao meio a verdade,/ que nos assiste para falar de predestinação?» (Exemplo Dúbio, Coimbra, 1975). Porque Deus é dúbio. Poesia cabo-verdiana ou por Cabo-Verde, em distintos registos: o de quem não conhece o país; e o de quem saiu, talvez demasiado cedo.


*António Jacinto Pascoal,
Mestre em Literaturas Africanas