fanzine Tertuliando (On-line)

Este "blog" é a versão "on-line" da fanzine "Tertuliando", publicada pela Casa Comum das Tertúlias. Aqui serão publicados: artigos de opinião, as conclusões/reflexões das nossas actividades: tertúlias, exposições, concertos, declamação de poesia, comunidades de leitores, cursos livres, apresentação de livros, de revistas, de fanzines... Fundador e Director: Luís Norberto Lourenço. Local: Castelo Branco. Desde 5 de Outubro de 2005. ISSN: 1646-7922 (versão impressa)

sábado, outubro 14, 2006

Inteira Vida*





A obra Inteiro Silencio (Caminho, 2006) de Cristina Mello representa um passo muito adiante de Metade Silêncio (Minerva, 1992), porquanto a linguagem surge agora com maior laboração estética e rigor linguístico, evitando um certo pendor minimalista do primeiro livro, mas mantendo a contenção os topoi da perda e da dor em sentidos físico e espiritual (e até certos morfemas obsessivos, como «mantra») – de resto, o magnífico desenho de capa de Jorge Ulisses surge integrado no corpo do livro de 1992. Mas, mais do que isso, Inteiro Silêncio é uma longa litania, fundada naquilo que nos parece radicar num universo vivido pelo sujeito poético como realidade que não admite ficções.
Ao lamentar-se ante um precipício pessoal, o sujeito poético sugere linhas de leitura recorrentes e obsessionantes: a perda do amado; o desejo do seu regresso; a violência traumática a que o «outro» o confinou («Quantas chicotadas ainda faltam?», «Acostumado veneno», «Acostumado açoite», «O lancinante veneno», «Que chicote me derrubou no chão» - os vergões e serpentes vários); o desejo de que o «outro» abandone a falsa consciência (e a ingénua falsidade) em que terá mergulhado («Porquê, então,/ Os enfeites», «Mas para quê tanta pirueta?»); a esperança de reencontrar o Amor, por sobre a dor passada («Ainda quero»); o ciúme assumido como forma de se distanciar da falsa concorrência («As mulheres saindo/ E todas sorvendo nesse dorso/ O teu inebriante cheiro// Uma mulher/ Apenas uma (…)// Os corpos partem/ Mas um deles fica»).

Mas Cristina Mello consegue, e bem, edificar um espaço de esperança serena, onde ainda parece tecer um pequeno pacto paradoxal com o profundo desespero (lido também nas dimensões metafórica e metaliterária da literatura): «Cada um é só/ Em sua casa/ Nem na palavra/ Somos muitos». Que não se confunda, porém, o cenário literário com a realidade afectiva. É com a comunicação pessoal que Cristina Mello nos interpela, colocando-se, já não no lugar de Penélope (do primeiro livro), mas na ara do sacrifício amoroso e universal a que Electra ascende.



*António Jacinto Pascoal

(Mestre em Literaturas Africanas)