Para Exemplo (Coevo) de João Vário
ao Rui Guilherme Silva, com estima
E assim o corpo seja bom para a sua Meca
mais próxima que é o engano
JV, Canto Primeiro, Livro 9
João Vário (heterónimo de João Varela) é Timóteo Tio Tiofe e outros, autor de uma série (de 12 volumes, para já) de livros poético-narrativos, todos intitulados de uma forma análoga – o substantivo «Exemplo», seguido de adjectivo (Geral, Relativo, Dúbio, etc.). No caso, só conhecemos o volume 9, Exemplo Coevo, editado em Agosto de 1998, em Cabo-Verde (Praia), com o alto patrocínio do Ministro da Cultura, numa edição conjunta do autor e Spleen-Edições.
Para melhor percepção do poemário, o autor dá-nos algumas pistas de leitura (que não são migalhas), fundamentais aliás, numa nota introdutória em jeito de prefácio – elucidativo a tal ponto, que o autor parece aí querer dilucidar aquilo que era esfíngico para o leitor. O labirinto de referências e a pretensa erudição do autor, em domínios como a pintura, escultura, arquitectura, literatura, etc., não parece confiná-lo a uma caboverdianidade existencial (ele próprio a si refere como o da «vida de ilhéu e de cidadão do mundo»). Doutro modo: parece-nos quase impossível que João Vário seja «o cabo-verdiano tipo», a menos que a diáspora lhe tenha proporcionado vivências e referentes enciclopédicos – e parece que sim, pois consta ter vivido em cidades como Antuérpia e Estrasburgo, em países como Angola e Portugal. Diríamos que João Vário, múltiplo em facetas como no nome, que a si mesmo se refere no poemário, é um produto de um tempo de circulação abundante da cultura mundial (sobretudo a ocidentalizada), possível apenas numa circunstância de vida feita fora das ilhas e já, ao que parece, na emergência da Internet.
O ano de 1937 (o do seu nascimento, em analogia ritualista com o de um Cristo), para que aponta a sua obra, simboliza o início de uma das maiores ignomínias da humanidade – com holocausto à vista – e os valores a que Vário se refere (bom senso, generosidade, coragem, inteligência, perdão), bem como as premissas do bem e do mal, o sofrimento, a verosimilhança, o destino, perseguem a ponderação daquilo que a humanidade possa ainda conter de humano.
Não é possível ler Vário sem coordenadas culturais altamente refinadas, e sem o propósito do seu preâmbulo: o de armadilhar o leitor, conferindo-lhe a sensação de ser detentor de referentes. Vário joga em vários tabuleiros: sobretudo no da verosimilhança. Querendo ser verosímil, mostra que não é verdadeiro. Oculta, pois, a sua identidade. É, como Pessoa, vários. Vário.
E é também patrício de Eça, na ironia: que verdade, então?
Referindo-se à «Paixão Segundo S. Mateus», Vário elege – e excelente escolha – a ária nº 47 (a do pedido de perdão de Pedro, cantada, curiosamente, por contralto) como uma das mais sublimes (nalguns casos, essa ária corresponde à nº 39, «Erbarme dich, mein Gott»), porém, é difícil escolher entre tanto assombro – talvez nos pudéssemos atrever a aventar a purificação de José como, entre todas, a mais bela – é a ária nº 65 ou 75 (noutras versões), intitulada «Mache dich, mein Herze, rein», quando José pede para enterrar Jesus, e toda a tensão se esvaneceu, sobrando um tempo-sem-tempo, que é o tempo pós-pathos (o que lembra o célebre Opus 11 de Barber). Mas Vário socorre-se de Bach para propor o tema do perdão e considerar que não há outra saída para a humanidade, apesar do mal – também assim se parece poder ler em «Cello Concerto», de um jovem poeta português, Daniel Duarte.
Fica a pergunta: quid est Vário? Porquê «exemplos»? Obras exemplares, no sentido didáctico e moralizador, de postulado punitivo? Ou apenas a dimensão ontológica na reflexão sobre a condição humana? E porquê o exagero da enumeração (por vezes, no limite da referencialidade banal, como de faits divers)?
Obra críptica, por certo, matizada de teor messiânico, a atestar pelas várias alusões a S. Paulo (Coríntios, II – 3), que se pressente ainda na malha do discurso, como em «Onde está o sábio? Onde está o escriba?», ou na condenação da sabedoria, em favor da «loucura» da mensagem de Cristo. Seja como for, reveladora da ética cristã, na sua mensagem desconcertante, que privilegia a cegueira do perdão contra tudo, numa extrema lucidez de loucura.
Depois, a sagração artística de 1937 (como na criação do mundo, acto genésico), como se também o poeta se quisesse coligir no conjunto da obra dessa colheita, não esquecendo a devida vénia dos mestres do real quotidiano (a crer que sim), pelo lado pseudo-científico de Vário.
Certo é que Vário não busca o Graal da verdade, mas o copo rude da verosimilhança. Não ser, mas parecer ser. Afinal, aquilo que incorpora, à maneira de Mutimati ou do recém falecido João-Maria Vilanova.
A sua linguagem, a do poemário, recorda o estilo neobarroco e vertiginoso de Craveirinha, embora muito mais hermética, simbólica e erudita – um coevo património que mal se vislumbra. Aparentemente, e segundo o registo catafórico do título, um olhar sobre a contemporaneidade, onde Deus («imprevisível vigilância/ da azáfama tutelar») parece esquecido dos homens. Ao estilo bíblico, Vário incorpora narcisicamente a figura de Cristo, nascido de Bia, sua mãe (Maria Delgado), e parido ao sétimo dia de Junho. Em estilo majestático de plural retórico.
Mitificando-se, Vário percorre o ano de 37 como se do início de uma certa era cristã se tratasse, evocando de forma memorialista, e por contraste, as grandes obras da altura e a génese da «besta apocalíptica». Jerusalém ignóbil é agora a Europa das «lutas intestinas» e fratricidas, cujos cavaleiros parecem fazer retornar um tempo de trevas. Ao invés, «as ilhas ocidentais» (Cabo-Verde) lembram uma Belém, paraíso perdido, num mundo voraz. Vário concebe o século XX como o mais vil da história da humanidade, porque a consciência e a imoralidade andam ombro a ombro, como o discernimento e o mal, de que sai vitorioso Caim. A Europa, continente de uma certa consciência moral, parece confinada ao paradoxo insanável da resolução do problema entre bem e mal. Tudo o que é genial surge, afinal, do sangue de Abel. A obra criadora, a mais bela, não se esquiva à ignomínia sobre que se constrói, e o que pare o sublime é capaz do atroz. Nesse dilema, parece-nos ouvir o eco de uma qualquer voz de um «Velho do Restelo»: «Ah a piedade é a pior das atrocidades!/ Homem, que pacto te pôs o fogo nos ouvidos/ e te espetou a alma nessa figueira estéril?».
O discurso opta sempre pela colagem ao bíblico e à linguagem de Cristo (alter ego de Vário): «Era o tempo da criação do campo/ de concentração de Buchenwald (…)»; «Em verdade, em verdade, quase tudo ignoramos (…)»; «Em verdade, em verdade, toda a vida/ vale o espaço do pão que não foi amedrontado»; «Tal está escrito, está escrito»; «mas quem nos poderá atirar aprimeira pedra». Usa da enumeração e socorre-se da estrutura sintáctica discursiva e reflexiva, sem quebras de verso – a opção é a narrativa. Não deixa de haver um alocutário, provavelmente o leitor ou, quem sabe, os juízes das culturas dominantes da época – como se o poeta recriasse o discurso retórico e sujeito a tribuna. Por entre sínteses de factos desse ano, Joe Louis aparece como uma curiosa alusão à obra de outros poetas africanos, embora não mereça qualquer destaque, naquilo que se pode considerar um resumo de efemérides do ano, sem conotações ideológicas, muito embora Vário vá insinuando preferências: «Porém, nós citamos Seferis, Ungaretti, Neruda». Percebe-se que o mundo é «vago e triste», percorre um destino inquebrantável e o sujeito anula-se perante o decurso da história e dessa «travessia da dor», onde prevalece a arbitrariedade. O homem é também um «bicho da terra» camoniano, através do qual «é a alma que vende/ mais barato todas as coisas». Sublinha-se a dificuldade do poeta em criar cumplicidades com o mundo, de que se afasta eticamente, não condescendendo face a Deus («a preguiça do destino»), porque crê que «a terra é toda a nossa esperança». Irremediável destino. Insanável, não fora a confiança de Vário no poder do homem em usar da sua mansidão, de restringir a vingança e de aplacar a cólera: para Vário, só a autenticidade do homem o redime, sem hipocrisia e sem ornamento. È preciso perdoar, considera, mas sem que o perdão seja espectáculo. Exactamente a linha teorizadora de Daniel Duarte, em «Cello Concerto».
Vário exige uma purificação da alma, um encontro genesíaco com o bem, que está plasmado na constituição genética dos homens, e para o qual foram gerados. Aproxima-se de uma lógica cristã, sem supremacias, sem ruído, e sem visibilidade. O bem é invisível, comedido. O valor da «pietas» é-lhe caro, não com um sentido vulgar, mas provido de silêncio e autenticidade, única forma de contrariar o «apocalipse esperto», que se foi aninhando no quotidiano e até na nossa consciência.
Vário desperta-nos para a resistência ao mal, ao desconcerto do mundo, através da fórmula da «posta de alívio assado, o favo do bem». Não há, segundo ele, outra forma de contrapor algo ao mal, senão o bem. Sob pena de ser outro mal – a sua continuação. Vário é paladino da reconciliação dos homens, evitando todo o tipo de caridade falsa ou intenção panfletária. A sua sobriedade moral exige esforço e contenção, mas pureza de sentimentos e carácter nobre: amar o outro. Mesmo o algoz. Sem contrapartidas. E ainda que se seja «vítima do fogo». Será possível amar, sem ser ridículo? – propõe Vário. Ridículo é quem não crê na genialidade humana, uma forma de amar sem o dizer. Bartok e a sua obra é apenas um exemplo de que a salvação dos homens é possível. Segundo a contrição.
Vário desdobra-se e remete Bessie Smith para o seu sósia, Timóteo Tio Tiofe, ironizando. Eis que fenece o canto primeiro.
O segundo canto permite suster alguma ilusão utópica inicial e revelar o descrédito sobre os homens. Vário, mais pessimista, julga-se fora da história, incapaz de um comprometimento pragmático que permita entrar nela para a modificar: «vamos ficando pelos arrabaldes do tempo». É um homem amargurado o predicador do discurso, alguém que já conhecia os resultados dos oráculos. Ainda assim, a esperança é palavra do seu vocabulário (perseverámos; avançámos), como se o recuo não fosse possível para quem acredita, ainda que desiludido. Ainda que as obras pareçam ruir (as grandes obras dos homens), haverá sempre o «arrojo do perdão». Provavelmente a expressão poética que sintetiza a obra de Vário (ele chega ao arrojo de «o amor do próximo», p. 46). Essa singularidade.
Canto terceiro: o dilema entre a genialidade do homem e a sua capacidade de manifestar o mal persiste (neste discurso altamente maniqueísta de joio e trigo. P. 56) – «Nós ficamos, mas eles, os nossos melhores mortos,/ por onde andarão que não vêem como o que nos envelhece (…)». Vendida a alma, pouco resta aos homens, e tudo é irreparável. Vário coloca-se no lugar de Cristo: ter nascido foi em vão? Não, desde que em busca da verdade ou da «impaciente justiça da razão». O sofrimento torna-se lateral. Em Vário, o plano ontológico de perseguição da identidade humana («vasculhando a sua sombra») é fulcral e consonante com a «praxis do bem». Por vezes, querer saber-se o que se é, pode ser uma falácia: para Vário, chega a ser um jogo que Deus nos impõe (p.56) – esse mesmo Deus que não fez com que «a ternura fosse o mar prometido». Neste canto terceiro, a consciência da ilusão faz-se maior. João Vário sabe que percorreu um caminho em que andou «às cegas atrás da bem-aventurança». Que foi puro demais e que com isso viu o engano da sua vida. Que Deus é um tarado. Que o mal é perene e a generosidade do mundo é impotente (p. 59). Que noutros tempos se fazia «da ternura o escudo». Que ninguém, sozinho, é paladino e pode alterar a história. Que a decepção é um facto. Que a beleza é a única unidade revelada – coloca, Vário, portanto, o belo acima do bem, a estética por sobre a ética. Que o bem e o mal parecem desaguar no estuário como vindos do mesmo rio, como se disso fosse feita nossa medida: extirpar o mal seria, de certo modo, acometer o bem. Por outras palavras: o bem não vive sem o mal.
Por certo, o canto terceiro, o mais derrotista de Vário. Uma vez que não tem lugar para a ambiguidade, pois, como indica, o extermínio não permite qualquer ambiguidade. Aparentemente, o pacto com a esperança foi abandonado. Vário capitulou, porque deixou de acreditar na generosidade e na esperança, como sustentáculos do bem. Lugar ainda para se perguntar onde essa humanidade que Levi questiona em «se isto é um homem»: «que é homem isto que lemos». Vário capitulou porque acha que o mal está bem organizado, os homens são volúveis e fracos, a terra é «pequena e molesta» e que o «dever essencial da esperança» é «lavar a alma».
O discurso memorialista termina num epílogo ao jeito assertivo. A esperança é arredada, o perdão não redime. E para se chegar à bem-aventurança, o caminho crê-se ser o da solidão. Nada mais amargo e desconcertante. Mas talvez razoável, porque a razoabilidade foi, há muito, ultrapassada. Porque «a verdade começou a ser/ uma infeliz inauguração, um incerto medicamento». É que o mal é poderoso. Para Vário, nada o cura, nem o tempo, nem a compaixão, nem a beleza.
Perante o mal ficamos sozinhos. Só a solidão o pode tentar enganar. Eis a pior das notícias. Apocalíptico cenário este dos tempos modernos, do exemplo coevo. Onde a alma está perdida e o corpo vai ao engano.
Magnífico poeta, o João Vário. E como os magníficos, terrível.
António Jacinto Pascoal*
Arronches, Julho de 2005
*Mestrando em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, Universidade de Coimbra
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