Wislawa Szymborska
A propósito do recente artigo, «Uma poesia de instantes», sobre a poetisa polaca, da autoria de Eduardo Pitta (Mil Folhas, 20 de Maio, 2006), cumpre-me acrescentar duas ou três ideias.
A primeira, de que concordo no todo com o que diz o crítico, sobretudo quando afirma que o problema da expressão musculada do discurso de Szymborska em português passa pela questão da espiral vertiginosa do discurso traduzido, provavelmente muito literal na versão de Júlio Sousa Gomes, mas mais maleável na versão de Sérgio Neves, ambas da Relógio D’Água (este último também responsável por uma tradução para a Cavalo de Ferro). Contudo, parece-me que Pitta é demasiado precipitado nas suas invectivas para com a tradução de Sousa Gomes (o que aliás também se pode ler num artigo da web, denominado «Ponto Final: consumidores de livros, protestai!», sobre a mesma tradução. E digo isto, porque, apesar de ter sentido a aspereza dessa tradução, lembrei-me de que uma tradução mais maleável pode também deturpar a ideia concreta de cada verso. E não há dúvida de que, apesar dessa aspereza, ficamos com a certeza de entender os poemas, dado serem inequívocos pelos títulos e pelos temas.
A primeira vez que descobri Szymborska foi em 2000 (Maio), quando li um artigo do cirurgião Lobo Antunes, na Revista da Ordem dos Médicos, citando um poema da polaca: «Curriculum Vitae». A tradução é excelente e ultrapassa em muito a que foi proposta por Sousa Gomes, que intitula «A preparação do currículo». Passo a transcrever excertos de ambas as versões, começando por Sousa Gomes:
«Independentemente da duração da vida,
o currículo deve ser curto.
É obrigatória a concisão e boa selecção dos factos,
transformar as paisagens em endereços,
e vagas recordações em datas fixas.
De todos os amores o conjugal é quanto basta,
e quanto aos filhos só os que nasceram.
Mais importante que quem conheces é de quem és conhecido.».
No artigo lido encontrei, para este excerto, os seguintes versos:
«Qualquer que seja o tempo vivido
Um currículo deve ser curto
Pede-se que seja sucinto, baseado
em factos concretos
Substituam-se as paisagens por
endereços
E as recordações vagas por datas
rigorosas
De todos os amores, mencionar
apenas o conjugal.
E de todos os filhos, só os que
nasceram
Quem te conhece é mais importante,
do que quem tu conheces».
As diferenças são evidentes (e acentuam-se no decorrer do poema), mas eu diria que nenhum dos textos se substitui ao outro. É que em matéria de tradução, todos os cuidados são poucos. A poesia de Petrarca vertida para português, em rima, métrica e na mesma forma, arrisca-se a ser um jogo de poesia portuguesa, a partir de um original intraduzível.
Quanto à afirmação de Pitta sobre o poema «Fotografia de 11 de Setembro», considero-a gratuita, porquanto o poema é um achado e uma excelente forma de traduzir o absurdo da tragédia. Pitta considera a poesia de Wislawa Szymborska com a dos intantes. Isso não deixa de ser verdade. Com o que não concordo é o crítico julgar que a polaca não tem a «preocupação do Sublime ou de transcendências existenciais e metafísicas». Ao contrário, falando do acaso e arbítrio a que somos expostos, parece-me que a autora nos coloca no centro da tragédia humana: a de não determos o controlo sobre nós mesmos, como se fôssemos as marionetas de um jogo estranho e aleatório. Julgo que isso escapou a Pitta. Mas espero que tenha reparado que o livro «Instante» é a alegoria desse instante, que é o da nossa mui curta vida.
Quanto à afirmação de Pitta sobre o poema «Fotografia de 11 de Setembro», considero-a gratuita, porquanto o poema é um achado e uma excelente forma de traduzir o absurdo da tragédia. Pitta considera a poesia de Wislawa Szymborska com a dos intantes. Isso não deixa de ser verdade. Com o que não concordo é o crítico julgar que a polaca não tem a «preocupação do Sublime ou de transcendências existenciais e metafísicas». Ao contrário, falando do acaso e arbítrio a que somos expostos, parece-me que a autora nos coloca no centro da tragédia humana: a de não determos o controlo sobre nós mesmos, como se fôssemos as marionetas de um jogo estranho e aleatório. Julgo que isso escapou a Pitta. Mas espero que tenha reparado que o livro «Instante» é a alegoria desse instante, que é o da nossa mui curta vida.
António Jacinto Pascoal, poeta e tradutor
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