No contexto das exposições patentes até 11 de Novembro no antigo edifício dos CTT de Castelo Branco: “Arte no Feminino e o Feminino na Arte”, comissariadas por Maria João Fernandes com organização de Paula Lisboa, Cristina Granada e Carlos Semedo, será apresentado, no próximo sábado, dia 22 de Outubro, pelas 18 horas, no mesmo local, o livro ARDENTIA [da Editorial Tágide], poemas de Gonçalo Salvado, desenhos de Ambrósio Ferreira e prefácios de Fernando Paulouro e Maria João Fernandes.
A apresentação estará a cargo dos autores dos prefácios.
A mulher dentro das palavras*
Foi um verso do poeta António Franco Alexandre - “há uma terra dentro das palavras” – que me assaltou a lembrança, à medida que me envolvia na leitura de ARDENTIA, o mais recente livro de Gonçalo Salvado, que agora se apresenta. Nessa navegação poética descobria, uma vez mais, o deslumbramento da celebração da mulher como síntese de uma aventura criadora, a de Gonçalo Salvado, que eu já defini como expressão superior da “arte de amar”. Poderia, então, murmurar por sobre os seus versos que há uma mulher dentro das palavras, porque no chão verbal que ele edifica em ARDENTIA dizer terra é dizer mulher e dizer mulher é dizer terra -- a mesma matriz inicial em que se consubstancia o louvor do corpo, como hino à alegria, na materialidade de um universo em que o fazer poético é surpreendente música de palavras e os versos se consomem em riquíssimas sugestões metafóricas de raiz elemental, terra mater das coisas essenciais: a água e o fogo, o bosque e as folhas, o musgo, as espigas, o pão, o vinho, o sol, o vento, as árvores, as fontes, o orvalho, a luz que incendeia a manhã ou o fim da tarde.
Quem conhece a obra de Gonçalo Salvado não estranha essa dimensão telúrica e essa espécie de “ofício cantante” que é a sua poesia, uma arte poética em que a mulher é questão que tem desde sempre consigo mesmo, mesa para todos os pensamentos, coração que por inspiração se agita como a brisa do mar. Esse veio lírico leva-nos ao encontro de tudo o que é essencial e mais permanente e comum na poesia portuguesa, que tantas vezes fez do amor o mais alto voo da criação. Esse é o universo de Gonçalo Salvado, desde que publicou Quando (A Mar Arte, Coimbra, 1996), e depois Embriaguez (Sirgo, Castelo Branco, 2001), Iridescências (Sirgo, Castelo Branco, 2002), Duplo Esplendor (Afrontamento, Porto, 2008), Entre a Vinha (Portugália Editora, Lisboa, 2010), que tive o prazer de prefaciar, Corpo Todo (Editora Labirinto, Fafe, 2010). E, por sobre esse percurso, duas antologias com significado especial, pois se incluem na persistência temática do autor: Camões Amor Somente (Ed. Caja Duero, Salamanca/Lisboa, 1999) e Cerejas – Poemas de Amor de Autores Portugueses Contemporâneos, organizada com Maria João Fernandes, 2004). Se quisermos perceber mais fundo os fundamentos da criação em Gonçalo Salvado temos de anotar que a poética se alia, também, a outras dimensões estéticas, como é o caso das artes plásticas e dos seus desenhos sobre papel, mais uma vez a mulher como centro do mundo, aqui em explosão de cores para recriar, por exemplo, a “Invenção do Paraíso” ou “Uma natureza viva”, traços de “esplendor” e “claridade”, em que os versos dão lugar à caligrafia cromática. Daí, também, os seus livros se abrirem à expressão plástica na fotografia (com José Miguel Jacinto) ou na pintura (com Manuel Cargaleiro e Ambrósio Ferreira)
Eugénio de Andrade, que viu sempre em Gonçalo Salvado um singular talento poético, escreveu um dia que “o acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação” e que “este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral” (Poesia e Prosa, O Jornal/Limiar, 1990). E o poeta, que por diversas vezes sublinhou o facto de na poesia “a melodia do homem ser a melodia de Eros”, clarificou essa ideia dizendo que “o que é nosso sem fingimento move-se numa terra de sentidos despertos” e “tudo o que em nós é voo, e sobe às vezes muito alto, tem no corpo o seu nascimento primeiro, e não perde nunca o sabor das fontes” .
É na busca dessas realidades primordiais que a poesia de Gonçalo Salvado se afirma e se consome. No fio condutor da sua arte, se escutarmos os seus poemas, como agora acontece em ARDENTIA, poderíamos, na linha de Herberto Hélder em A Colher na Boca) afirmar que “começa o tempo onde a mulher começa” e, como epígrafe do longo poema de amor de Gonçalo Salvado, poisar aqueles versos tão encantatórios do autor de Ofício Cantante (Assírio & Alvim, 2009):
“Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
-- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram”
(...)
Todo o poema de Gonçalo Salvado – cem ideias, cem imagens, cem poemas --, respira esse ritmo, subjugado ao fascínio do desejo (“Mais do que nunca estou imerso em ti/ como no interior da própria luz”), à transcendente beleza (“Quem te criou?/ Que deus imaginou teu corpo/ com a mesma luz da aurora?De que longínquo céu/ provém tua essência? ”), à surpresa de instantes únicos (“Só por ver-te a manhã suspira,/a luz esplende de alegria,/aves altas ensaiam os seus cantos/frementes de euforia”).
A epifania poética da mulher, tão reveladora e original, responde a uma inquietação antiga do poeta, quando, em Camões amor somente, afirmou pretender “construir um Cântico dos Cânticos e uma Arte de Amar portugueses, servindo-nos de fragmentos da lírica, da épica e da dramaturgia camonianas”. Em certo sentido, ARDENTIA é esse caminho agora andado com versos dele, Gonçalo Salvado. A mulher é a casa do poema. O seu ponto zenital ou, como em Maria Teresa Horta, “dizer do corpo/o corpo da poesia”:
“(...)
Despes-te e o sol torna-se favo,
derrama-se em doçura inebriado,
escolhe para ti os seus raios mais claros,
alonga-se, dilata-se,
persegue a curva de tuas ancas,
quer abandonar o céu,
descer à terra e adormecer contigo”
Todo o livro é um poema em acto. Uma celebração sensorial do amor, uma celebração total da mulher, que nunca deixa de nos surpreender pela amplitude do sonho. Um dia, perguntei a Eugénio uma definição de poesia. Ele resumiu tudo com palavras simples, como só os poetas sabem fazer. Poesia, disse-me ele, é pele contra pele. Encontramos essa dimensão no belíssimo poema de Gonçalo Salvado com aquela sobriedade que acontece sempre que as palavras se transformam em matéria dos sonhos. ARDENTIA é isso mesmo, a mulher dentro das palavras, como neste poema, que aqui deixo como convite ao prazer da leitura de Gonçalo Salvado:
“Em ti o chão exausto de meu desejo. A flor aberta
dos sentidos. A calidez do lume. A água. O vinho.
O sangue a estuar em fúria. O grito do sol
que em transe de labareda fulge e irradia.
A extensão de tantos vales
e colinas. Fragrantes. Infinitas.
Os pomos saborosos, repartidos.
Os gomos. Os sumos ardorosos.
Os bosques impregnados de maresia.
A placidez molhada das ervas.
O luzir loiro das searas pelo vento devastadas.
O estio. O seu zénite. A sua vertigem.
Em ti a inclinação dos ramos. A translucidez do verde.
O derrame da seiva. O estremecer das raizes.
O musgo despontando. O aveludado dos troncos.
Os álamos. Os plátanos. E outras núbeis melodias.
O espreguiçar incandescente dos rios.
O êxtase das aves altas anunciando o fervor
de um beijo. De um afago. De uma carícia.
O hálito das corolas. As sépalas. Os estames.
O brilho e o odor silvestre da resina. A relva sedosa.
A primavera inebriada com sua própria brisa.
Em ti o menear da terra. As eiras. O feno flamante.
O irromper dos brotos. O despertar dos cálices.
A embriaguez do nardo. E da acácia, festiva.
O matiz das cores na várzea repercutido.
O som dos mananciais posto a descoberto.
O manar das fontes em euforia.
Os céus azuis a derramarem hinos.
O trinado agudo da andorinha.
O acenar obstinado dos choupos.
As centelhas rubras do crepúsculo.
O perfume juvenil das vinhas.
Em ti o delírio das ondas. Das espumas.
As fogueiras ateadas. Os aromas fulvos.
O sopro das chamas. O pão aceso. As espigas.
Os campos de lilases que se estendem
numa queimadura de aurora.
As pétalas humedecidas.
O incêndio azul do orvalho.
A alvura da açucena na manhã florida.
Em ti, amada, celebro a memória de todas as coisas vivas”.
Este exemplo mostra bem a matéria do poema e a qualidade da escrita poética de Gonçalo Salvado. Uma escrita que neste livro não podia ter melhor companheiro de jornada do que o artista plástico Ambrósio Ferreira, outro albicastrense de grande talento, que ilustra com desenhos magníficos os poemas de ARDENTIA. Também aqui, na linha de uma preocupação estética em que a mulher ocupa também um lugar dominante, Ambrósio Ferreira dá expressão a um belíssimo imaginário feminino, à procura da invenção de outros paraísos.
Num tempo em que o mundo parece cada vez menos limpo e habitável, em que a desumanidade se banaliza, o universo criador pode ser um alento de esperança. Então, a publicação de um livro em que a mulher se torna ser de celebração poética, é uma proposta de alegria contra o cinzentismo dos dias. Como dizia Jorge de Sena (Poesia de 26 Séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993), “nunca a poesia, é certo, transformou o mundo – mas o mundo nunca se transformaria sem ela”. O mundo. Os dias. Os instantes que fazem a vida.
*Fernando Paulouro Neves
Setembro de 2010
ARDENTIA, A IMAGEM DA MULHER NOS DESENHOS DE AMBRÓSIO FERREIRA E NA POESIA DE GONÇALO SALVADO**
Ardentia, “fosforescência das águas do mar, iluminadas pela lua”, na definição do dicionário, foi o título escolhido pelo poeta Gonçalo Salvado, para este livro e ao mesmo tempo para a mostra de desenhos do artista Ambrósio Ferreira, que o ilustram (1). A poesia de Gonçalo Salvado, rio caudaloso e deslumbrante de imagens brotando da original fonte dos arquétipos, é inspirada pelo intemporal Cântico dos Cânticos e pelo grande filão da poesia amorosa, de Petrarca e Camões, a Eugénio de Andrade, Herberto Helder, Albano Martins e António Ramos Rosa. Na sua escrita intensa e luminosa vemos surgir a figura do arquétipo, realidade secreta e sublime e essência feminina da natureza e da alma, secundada pela melodia sensualmente plástica que entoam em surdina, mas com não menos delicado e mágico fulgor, os desenhos de Ambrósio Ferreira. A Arte erótica indiana, a carnalidade de Rubens, luminosa em Tiziano, Boucher ou Renoir, o hino a Eros da escultura e dos desenhos eróticos de Rodin, a delicadeza da linha em Klimt e Schiele, a sensualidade requintada em Degas, inquietante em Modigliani, ardente nas gravuras de Picasso, a delicada aura da feminina presença em Matisse, a mágica serenidade dos nus de Magritte, as meninas de Balthus, muitos séculos de arte e erotismo a Oriente e a Ocidente alimentam o poder e a invenção da linha que resume o íntimo espírito da cor, sem a ela recorrer. Os desenhos de Almada Negreiros, Milly Possoz, Julio, José Rodrigues, João Cutileiro ou Francisco Simões, entre muitos outros, representam entre nós, esse fluxo de prodígios que traduz as mágicas virtualidades da linha, capaz de transportar a vida e de se libertar dela, cometa negro iluminando os céus do olhar com o fulgor da sua exaltação. A esse grande fluxo podemos juntar agora esta impressionante galeria de criaturas do lápis e do secreto incêndio do amor e do erotismo que alimentam a vida e dão forma à arte nos desenhos de Ambrósio Ferreira. Linha dançarina, coleante, bailarina, insubmissa, negando o poder da morte, a ele sobrepondo uma presença que manifesta as centelhas do íntimo calor da vida. Essência de um feminino a que dá voz total o estro do poeta assumidamente lírico, Gonçalo Salvado. Na espécie de cume de exaltação, de êxtase ou de embriaguez a que a sua poesia nos conduz reflecte-se a imagem da mulher intemporal, realidade e arquétipo, figura do segredo de todos os arcanos, poderosa na altiva carnalidade da sua nudez, de silêncios e música viva, “mais formosa do que a vida”, sol claro e lua irradiante, numa verdadeira tempestade de imagens alquímicas, expressão de uma totalidade que todo o grande poeta persegue.
À sinfonia da linha, dúctil e sensorialmente iluminada, arabesco onde se acolhem a pureza, a apoteose e por vezes o declínio, não apenas da mulher, mas da humana condição, liga-se o mistério vivo das palavras na poesia de Gonçalo Salvado, acutilantes na sua nudez de estrelas e de astros diurnos, frágeis, cheias de aromas, atravessando o céu de uma solidão milenar com a promessa do amor, a única capaz de nos devolver o paraíso. O diálogo de Ambrósio Ferreira e de Gonçalo Salvado, começado em Camões Amor Somente, sob o signo do grande poeta do Renascimento português, diálogo da palavra poética e da imagem, assume hoje uma expressão de particular beleza e significado, sob o signo da mulher.
A ela se referiu, nos seus ensaios, Gaston Bachelard, pólo de uma alquimia, que tal como o amor visa uma totalidade. O amor reúne sob o seu impulso todas as antíteses, o dia e a noite, a terra e o céu, o consciente e o inconsciente, o feminino e o masculino. A noite é o mágico território das cores e a mulher a obscura e luminosa, imaginada, face lunar da vida, aquática na sua “ardentia” de astro misterioso, metade de uma consciência em busca do elo com uma harmonia original.
No subtil diálogo da poesia e do desenho abre-se uma vez mais um limiar capaz de nos conduzir ao horizonte do possível, centro da maravilhosa nudez, inesgotável enigma de uma graça e de um delírio infinitos.
**Maria João Fernandes
Nota:
1. “Ardentia”, Mostra dos desenhos de Ambrósio Ferreira, incluída nas exposições colectivas: “Arte Feminina e o Feminino na Arte”, comissariadas por Maria João Fernandes, organização de Paula Lisboa e apresentadas no espaço CTT em Castelo Branco, de 5 de Outubro a 11 de Novembro.
Nota editorial:
Excepto o convite, os "link's" no título do "post", o "link" para o blogue de Gonçalo Salvado, para a editora, bem como as etiquetas, toda a restante informação nos foi enviada pelo Gonçalo Salvado.
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