Para Carolina Beatriz Ângelo, poema de Maria do Sameiro Barroso
Poema enviado pela autora:
PARA CAROLINA BEATRIZ
ÂNGELO*
Nada vou dizer das tuas mãos,
Carolina,
nem das bandeiras que ascendem nos
gestos
em que a decisão é uma faca
cirúrgica
a preceder a noite, o ser, a
jangada ilesa,
a ousadia de um voto.
Lutaste.
Contra as serpentes vazias,
acorrentadas
no país das sombras.
Combateste. Por ti, pela luz, pelo
corpo íntegro,
juntando, uma a uma, as letras do
universo
que encerra a palavra MULHER.
Talvez não soubesses que a vida é a
palavra
com que a poesia define a flor das
algas.
Talvez não soubesse que o amor é
uma lua
vermelha, a morte uma cisterna
salgada,
mas sabias que, em teus braços,
havia uma pluma leve,
no teu peito, uma ave canora,
e, nos teus olhos, uma rosa
incendiada.
Nada, pois, vou dizer das tuas
mãos,
Carolina,
nem da liberdade que flutua nos
teus dedos.
Da noite, fizeste dia, à raiz,
deste futuro.
Não mais, em casa, sufoca a génese
de fêmeas entranhas que gera
sementes
maduras.
O vento consigo traz um cemitério
de palavras.
Na tua boca, cada pedra é um
dilúvio,
onde terminam velhas guerras.
Quando as novas rotinas se
instalam,
dourado é o útero da terra.
Nas casas, nas ruas, nos sofridos hospitais,
o espaço, outrora interdito,
engendra novas quimeras.
Nada vou dizer de ti, Carolina,
nem do silêncio que urge,
quando as fontes são bandeiras,
onde brilham o sangue e a seda,
em becos, outrora escondidos,
com janelas para a rua.
Nada vou dizer de ti, Carolina, porque
o sol
te pronuncia,
desde os tempos mais agrestes.
Os fluidos do mar ecoam em tuas
essências
brancas de gardénias e violeta.
A noite é todo o corpo, dizes,
até que uma lâmpada secreta e pura
tudo venha iluminar.
A noite é mais que o leite que os
mamilos
bebem, de manhã.
A noite é mais que o redondel de
exílio
que os homens conceberam.
E bebo, com temor, o medo que ainda
vivem
as mulheres de agora, pisadas,
maltratadas.
Usam burka, no Afgnanistão,
sem direitos, nem auxílio.
Suicidam-se pelo fogo.
Queimam, numa agonia atroz,
o desespero que as corrói,
na sua pátria de exílio.
Pelo pesadelo morrem, sem ter o
direito
à face, ao corpo, nem aos poros
arejados
que é preciso libertar,
na noite, carrossel de exílio,
na morte, jardim de delírio,
no mundo onde os serem temem viver
o coração é cinza negra
que não os deixa despertar.
Por isso, é na sombra, que os
poemas
se escrevem,
nos muros, nas fendas, onde as
rosas
se insinuam em dolorosas flores de
papel,
em ecos a lembrar ritos, sendas,
laços,
rios que inundam o sangue,
nós que alimentam e enlaçam.
Como lembrar-te, mulher, política,
cirurgiã?
Como dizer-te, pomba, gladíolo,
vislumbre de luz, em jardim
secreto?
O canto é novo, sempre novo.
Por ele vivo.
A ele respondo.
As águas escrevem-me,
quando as aves flutuam na manhã.
Catálogo da
Exposição de Homenagem a Carolina Beatriz Ângelo, Intersecções dos sentidos, palavras, actos e imagens, Dulce Helena
Pires Borges (Org.), Museu da Guarda, 2010, p. 45. O poema foi precedido de um
estudo, intitulado Prolapsos Genitais — a
Tese de Carolina, pp. 42-44.
Etiquetas: Maria do Sameiro Barroso, Para Carolina Beatriz Ângelo, Poesia
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