Lenda e mito
Camiño Noia Campos em entrevista ao Público afirmou “Um conto surge da imaginação , consiste numa história ficcionada. No caso da lenda, a história aconteceu memso. Quem a conta não tem dúvidas sobre isso. Conta-a como tendo acontecido próprio, ou com alguém de confiança. Se o contador de história já não acredita na sua veracidade, então já deixou de ser lenda (…)[1].
Alexandre Correia afirma:
“É geralmente aceite de que a lenda é um relato passado de geração em geração, tendo um fundo verídico, onde o objecto de crença pelas comunidades que a respeitam. É uma história não testada pela história. Está localizada numa área geográfica ou numa determinada época, embora os factos históricos “apareçam tranfigurados pela imaginação popular. A existência de uma lenda é, em si mesma, uma consequência da fragilidade da história, ou dos documentos que a fundamentam. Por isso, nasce sempre um espaço nebuloso da história, procurando contemplá-la, ou justificá-la, num quadro de representações do imaginário . (…)”[2].
As personagens da lenda são seres bem definidos e bem representados na memória colectiva, documentos que a fundamentam. Aliás raramente uma lenda começa com a fórmula “era uma vez” como sucede com o conto.
À força de ser sucessivamente contada ao longo das gerações, a lenda passa por um processo de diluição do seu fundo real com a incorporação de uma forte componente imaginativa e fantasiosa, certo é também que sempre contada pela comunidade como mantendo um forte fundamento histórico e real[3].
Como colocar nestes termos a dualidade história/lenda? Será que o destino das lendas é serem “abatidas” pelos historiadores? Serão os historiadores inimigos fatais das lendas? Embora pese o desdém com que muitas vezes se olha para a lenda nas abordagens históricas , na realidade a ciência histórica diz-nos que não. Como sustenta Velasco, não é certo que só à lendas onde não há história, nem história onde há lendas[4]. Toda e qualquer lenda que se preze tem os seus pontos de referência, que vão juntando várias arestas pouco limadas e que em determinda altura olhamos para esses pontos com outro olhar. E é esse o olhar de Dangelo Muller que resume a noção de lenda e de mito através desta forma:
“Algumas lendas, como as etiológicas, são pequenos mitos e os mitos geram lendas locais, daí surgir a confusão entre tais géneros da literatura oral. O mito tem características de ser universal, atemporal e uma acção constante em movimento que se disfarça noutros mitos, enquanto a lenda é local, é um ponto imóvel de referência e que selocaliza obrigatoriamente no tempo. A lenda explica, mágica ou sobrenaturalmente, qualquer origem e forma local, indica a razão de um hábito colectivo de uma superstição”[5].
É desta maneira que surge mais um elemento necessário aquilo a que chamamos símbolo. Ora o símbolo é nada mais nada menos, que uma entidade benigna que é visto nalgumas culturas como uma espécie de espírito protector, enquanto noutras culturas é visto como um ser maligno. Neste caso apresentamos um regresso condicional do homem, ou seja a metamorfose do lobisohomem constitui uma volta do positivismo feroz ao estado pré-humano animal ou bestial, próximo daquilo que o autor chama de “relação hostil “presente na violência, sangue e monstruosidade.
Conclui-se que o licantropo ou lobisohomem assuma vários tipos de arquetipos. Carl Jung que trabalhou o conceito, interliga-o à ideia de símbolos ou inconsciente. O autor acreditava que o arquetipo estaria na parte mais profunda do inconsciente, o chamado “inconsciente colectivo” construído pelas imagens e símbolos impercetíveis.
O arquétipo pode ser a forma típica de pensar e agir do ser humano, baseado em imagens universais, vindas de tempos antigos e mantidas pelo inconsciente colectivo ao longo de várias gerações. Dizer que a ideia de arquétipo está ligada ao símbolo e estrutura implica vincular o conceito a um patamar baseado em símbolos, que se unem e formam, isto é , pequenos modelos psíquicos.
A problemática do licantropo e o cruzamento das leituras míticas, arquétipas e símbolicas obtêm-se através de um corte epistemológico referente aos elementos componentes do mito em si, os quais permitem a sua fixação no suposto subconsciente colectivo formulado por Jung .
A crença mais generalizada do lobisomem como o último dos sete filhos varões e em rigor, de filhos que nasceram de seguida, sem irmã de permeio.
Segundo um artigo no “Almanaque de Lembranças” para 1870[6], nos arredores de Lamego. A existência de um lobisomem está dependente de várias circunstâncias.
Assim morrendo alguém que se julga ter sido vítima de uma bruxaria, transforma-se depois em lobisomem com a propriedade de tomar algum tempo a figura de um lobo, de um jumento, de um bode, ou de um cabrito montês, outras vezes o lobisomem gera-se quando algum jumento se espoja no chão ou aparece uma bruxa, e esta diz algumas palavras incompreensíveis. Gera-se também espontaneamente quando havendo numa família um certo número de filhas, aparece um filho. Dando-se neste caso é forçosamente lobisomem. Há meios de evitar que o sétimo filho seja condenado a ser lobisomem. “Logo que nasçam três filhos varões seguidos, o terceiro deve ser baptizado com o nome de Adão; não tendo havido essa preocupação e completando-se a série de sete,o último deve ter como padrinho o irmão mais velho. (Foz do Douro)” [7]
Nos Açores e no Brasil o meio consiste no primeiro dos sete irmãos a dar nome de Bento[8].
Segundo os relatos a data em que se dá a primeira transformação começava aos 13 anos. Esta metamorfose decorria geralmente numa noite de lua cheia.
Os lobisomens apresentavam-se às horas do crepúsculo numa mata ou lugar sombrio, e de noite atravessam povoações fugindo e fazendo grande barulho nas ruas, barulho esse que é ouvido especialmente pelas pessoas que querem influir. Os malefícios piores são os dos lobisomens que têm a forma dos pés de cabrito ou cavalo, quando se vê algum destes seres deve-se repetir três vezes: “Avé Maria, Avé Maria, Ave Maria, dá-se um grande estoiro e rebenta”[9].
Em Coimbra havia na Couraça de Lisboa, na muralha acima da praça da Alegria , uma pilastra ou ameia que derrubada por um lobisomem. Numa outra história recolhida por Adolfo Coelho, a história dos lobisomens parece confirmar a história de comer crianças, tal como a história infantil que tantas vezes ouvimos.
“Um homem que tinha o fado de lobisomem e foi uma vez para a carrada (buscar lenha ao mato) e levou o filho com ele:
- Deixa-te estar aqui no carro, e se vires alguém ou algum burro, chuça-o com esta vara .
O carro ficou no carro e de noite, enquanto o homem foi para o seu fadário, os bois regressaram a casa, mas nem apareceu o filho, nem o pai. O pai entrou em casa, depois de ter comido o próprio filho, tendo aparecido à porta de casa na forma de um cão, pouco depois de ter novamente a forma humana. No momento em que chegou a casa, pediu à mulher que o catasse . Estava muito amarelo e cansado. A mulher estava muito preocupada , porque o filho não aparecia e começou a perguntar ao marido:
- Quando é que aparece o rapaz?
- O rapaz há-de aparecer . - respondeu ele .
- Mas onde é que tu andas-te? Não foste à carrada?
- Fui dar um passeio. Estou tão enjoado que tenho vontade de vomitar. Ao vomitar o homem acabou por fazer sair o filho de dentro de si[10]”.
[1] Cf Paulo Moura , op.cit , p.4
[2] Cf Alexandre Correia ,op.cit
[3] Cf idem , ibidem
[4] Cf idem , ibidem
[5] Cf Dangelo, Muller, Mestre Amaro, um lobisohomem do Canavial: a representação do Licantropo em Fogo Morto ( Dissertação de Mestardo em Literatura Brasileira, 2009 )
[6] Cf Almanaque de Lembranças para 1870, p.341
[7] Para este assunto veja-se a obra de Adolfo Coelho Obra Etnográfica reeditada em meados dos anos noventa ( introd e notas de João Leal ) p354
[8] Cf Almanaque Açoriano , n. 1868, p.111 e ainda em Almanaque de Lembranças , n. 1860, p.181
[9] Cf Almanaque de Lembranças ,S/ D ,
[10] Cf Adolfo Coelho , op.cit , p. 354 e ss
Camiño Noia Campos em entrevista ao Público afirmou “Um conto surge da imaginação , consiste numa história ficcionada. No caso da lenda, a história aconteceu memso. Quem a conta não tem dúvidas sobre isso. Conta-a como tendo acontecido próprio, ou com alguém de confiança. Se o contador de história já não acredita na sua veracidade, então já deixou de ser lenda (…)[1].
Alexandre Correia afirma:
“É geralmente aceite de que a lenda é um relato passado de geração em geração, tendo um fundo verídico, onde o objecto de crença pelas comunidades que a respeitam. É uma história não testada pela história. Está localizada numa área geográfica ou numa determinada época, embora os factos históricos “apareçam tranfigurados pela imaginação popular. A existência de uma lenda é, em si mesma, uma consequência da fragilidade da história, ou dos documentos que a fundamentam. Por isso, nasce sempre um espaço nebuloso da história, procurando contemplá-la, ou justificá-la, num quadro de representações do imaginário . (…)”[2].
As personagens da lenda são seres bem definidos e bem representados na memória colectiva, documentos que a fundamentam. Aliás raramente uma lenda começa com a fórmula “era uma vez” como sucede com o conto.
À força de ser sucessivamente contada ao longo das gerações, a lenda passa por um processo de diluição do seu fundo real com a incorporação de uma forte componente imaginativa e fantasiosa, certo é também que sempre contada pela comunidade como mantendo um forte fundamento histórico e real[3].
Como colocar nestes termos a dualidade história/lenda? Será que o destino das lendas é serem “abatidas” pelos historiadores? Serão os historiadores inimigos fatais das lendas? Embora pese o desdém com que muitas vezes se olha para a lenda nas abordagens históricas , na realidade a ciência histórica diz-nos que não. Como sustenta Velasco, não é certo que só à lendas onde não há história, nem história onde há lendas[4]. Toda e qualquer lenda que se preze tem os seus pontos de referência, que vão juntando várias arestas pouco limadas e que em determinda altura olhamos para esses pontos com outro olhar. E é esse o olhar de Dangelo Muller que resume a noção de lenda e de mito através desta forma:
“Algumas lendas, como as etiológicas, são pequenos mitos e os mitos geram lendas locais, daí surgir a confusão entre tais géneros da literatura oral. O mito tem características de ser universal, atemporal e uma acção constante em movimento que se disfarça noutros mitos, enquanto a lenda é local, é um ponto imóvel de referência e que selocaliza obrigatoriamente no tempo. A lenda explica, mágica ou sobrenaturalmente, qualquer origem e forma local, indica a razão de um hábito colectivo de uma superstição”[5].
É desta maneira que surge mais um elemento necessário aquilo a que chamamos símbolo. Ora o símbolo é nada mais nada menos, que uma entidade benigna que é visto nalgumas culturas como uma espécie de espírito protector, enquanto noutras culturas é visto como um ser maligno. Neste caso apresentamos um regresso condicional do homem, ou seja a metamorfose do lobisohomem constitui uma volta do positivismo feroz ao estado pré-humano animal ou bestial, próximo daquilo que o autor chama de “relação hostil “presente na violência, sangue e monstruosidade.
Conclui-se que o licantropo ou lobisohomem assuma vários tipos de arquetipos. Carl Jung que trabalhou o conceito, interliga-o à ideia de símbolos ou inconsciente. O autor acreditava que o arquetipo estaria na parte mais profunda do inconsciente, o chamado “inconsciente colectivo” construído pelas imagens e símbolos impercetíveis.
O arquétipo pode ser a forma típica de pensar e agir do ser humano, baseado em imagens universais, vindas de tempos antigos e mantidas pelo inconsciente colectivo ao longo de várias gerações. Dizer que a ideia de arquétipo está ligada ao símbolo e estrutura implica vincular o conceito a um patamar baseado em símbolos, que se unem e formam, isto é , pequenos modelos psíquicos.
A problemática do licantropo e o cruzamento das leituras míticas, arquétipas e símbolicas obtêm-se através de um corte epistemológico referente aos elementos componentes do mito em si, os quais permitem a sua fixação no suposto subconsciente colectivo formulado por Jung .
A crença mais generalizada do lobisomem como o último dos sete filhos varões e em rigor, de filhos que nasceram de seguida, sem irmã de permeio.
Segundo um artigo no “Almanaque de Lembranças” para 1870[6], nos arredores de Lamego. A existência de um lobisomem está dependente de várias circunstâncias.
Assim morrendo alguém que se julga ter sido vítima de uma bruxaria, transforma-se depois em lobisomem com a propriedade de tomar algum tempo a figura de um lobo, de um jumento, de um bode, ou de um cabrito montês, outras vezes o lobisomem gera-se quando algum jumento se espoja no chão ou aparece uma bruxa, e esta diz algumas palavras incompreensíveis. Gera-se também espontaneamente quando havendo numa família um certo número de filhas, aparece um filho. Dando-se neste caso é forçosamente lobisomem. Há meios de evitar que o sétimo filho seja condenado a ser lobisomem. “Logo que nasçam três filhos varões seguidos, o terceiro deve ser baptizado com o nome de Adão; não tendo havido essa preocupação e completando-se a série de sete,o último deve ter como padrinho o irmão mais velho. (Foz do Douro)” [7]
Nos Açores e no Brasil o meio consiste no primeiro dos sete irmãos a dar nome de Bento[8].
Segundo os relatos a data em que se dá a primeira transformação começava aos 13 anos. Esta metamorfose decorria geralmente numa noite de lua cheia.
Os lobisomens apresentavam-se às horas do crepúsculo numa mata ou lugar sombrio, e de noite atravessam povoações fugindo e fazendo grande barulho nas ruas, barulho esse que é ouvido especialmente pelas pessoas que querem influir. Os malefícios piores são os dos lobisomens que têm a forma dos pés de cabrito ou cavalo, quando se vê algum destes seres deve-se repetir três vezes: “Avé Maria, Avé Maria, Ave Maria, dá-se um grande estoiro e rebenta”[9].
Em Coimbra havia na Couraça de Lisboa, na muralha acima da praça da Alegria , uma pilastra ou ameia que derrubada por um lobisomem. Numa outra história recolhida por Adolfo Coelho, a história dos lobisomens parece confirmar a história de comer crianças, tal como a história infantil que tantas vezes ouvimos.
“Um homem que tinha o fado de lobisomem e foi uma vez para a carrada (buscar lenha ao mato) e levou o filho com ele:
- Deixa-te estar aqui no carro, e se vires alguém ou algum burro, chuça-o com esta vara .
O carro ficou no carro e de noite, enquanto o homem foi para o seu fadário, os bois regressaram a casa, mas nem apareceu o filho, nem o pai. O pai entrou em casa, depois de ter comido o próprio filho, tendo aparecido à porta de casa na forma de um cão, pouco depois de ter novamente a forma humana. No momento em que chegou a casa, pediu à mulher que o catasse . Estava muito amarelo e cansado. A mulher estava muito preocupada , porque o filho não aparecia e começou a perguntar ao marido:
- Quando é que aparece o rapaz?
- O rapaz há-de aparecer . - respondeu ele .
- Mas onde é que tu andas-te? Não foste à carrada?
- Fui dar um passeio. Estou tão enjoado que tenho vontade de vomitar. Ao vomitar o homem acabou por fazer sair o filho de dentro de si[10]”.
[1] Cf Paulo Moura , op.cit , p.4
[2] Cf Alexandre Correia ,op.cit
[3] Cf idem , ibidem
[4] Cf idem , ibidem
[5] Cf Dangelo, Muller, Mestre Amaro, um lobisohomem do Canavial: a representação do Licantropo em Fogo Morto ( Dissertação de Mestardo em Literatura Brasileira, 2009 )
[6] Cf Almanaque de Lembranças para 1870, p.341
[7] Para este assunto veja-se a obra de Adolfo Coelho Obra Etnográfica reeditada em meados dos anos noventa ( introd e notas de João Leal ) p354
[8] Cf Almanaque Açoriano , n. 1868, p.111 e ainda em Almanaque de Lembranças , n. 1860, p.181
[9] Cf Almanaque de Lembranças ,S/ D ,
[10] Cf Adolfo Coelho , op.cit , p. 354 e ss
Etiquetas: Historiografia, lenda e mito, lobo e lobisomem, memória colectiva
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